Não é porque não
estou sendo
lido que eu não
deva ser escrito.
O tempo tem câimbras.
A noite se acomoda
como um corpo num banho,
exalando nuvens e luzes de carro
- tossindo pássaros.
A escuridão, como um abraço,
senta-se comigo e preenche o quarto
com esse estranho cio de silêncios,
onde as coisas são perdidas:
tardes de feriado,
o som de um velho vinil,
fotos desbotadas,
amigos de infância.
A lembrança se esfiapa em todas as direções,
como se eu estivesse guardando o mar
em alguidares de areia.
Tudo é líquido
e sem margens.
E o que a memória traz é um destilado:
construto de espelho e sombra,
um antilume íntimo
eclipsando esse momento sem nome.
Sou causa deste efeito,
tropegamente humano.
À hora em que não há socorro,
quem não consegue arcar
com o quotidiano ríspido
há que se asilar
no passado impregnado na pele.
Há dias que são assim:
essa rejeição às soluções fáceis,
essa aflição por qualquer mancia.
Busco uma outra certeza, um modo
de dizer, um lapso.
(Espio sob as dobras do discurso).
Queria poder habitar a folha
sem tantas rasuras
e não mais bater o coração
contra essa parede de palavras.
O mundo me importa tão só enquanto
se engasta em escrita,
pois o que não sei
fazer desconto
no que escrevo
e escrevo como se em algum lugar,
entre o inalcançável e o invisível,
eu soubesse haver uma resposta fácil,
aquela que rejeitei logo de início.
O truque, dizem,
é se deixar para trás,
disfarçar-se
no corpo inconsiderado
de um homem que sempre fui
destinado a ser
e acelerar minha pressa
em direção aos compromissos assumidos.
A testa expõe seus vincos,
como se a antever
o que virá:
a lemniscata do ponto de interrogação,
o adelgaçamento da paciência,
da fé,
da confiança.
Mas aqui onde
o dialeto não consiste
de palavras mas de horários,
não importa a presciência.
Há simplesmente algarismos.
Há simplesmente a agenda,
escondendo em seus cronogramas
o ano que se agrisalha
quotidianamente,
o para sempre que vamos
deixando escapar
a todo o momento.
E nós rogamos
para que os trincos
velem as amarguras,
que as portas fechadas
filtrem as decepções,
que no fim de cada dia
haja algo que tenha
feito sentido,
qualquer um.
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