Ela me telefona
para dizer que me leu.
E que continuo
para poucos.
Esotérico. Não
facilito as coisas
para meus leitores.
Ela é gentil
ao colocá-los
no plural.
Mas isso não
é surpresa, ela é
assim há coisa
de muito tempo.
Em minha defesa,
devo dizer que o sentido
do que escrevo está
circunscrito pela percepção
- melhor, pelo indiscernimento -
do que seus olhos
arrecadam por instantes,
uma atmosfera mais
do que uma
ciência exata.
Que você me leia
à margem do texto,
que eu me abandone
à castidade perversa
do nexo recusado.
Pois, lembre-se,
de nada adianta a glosa
- a própria tradução
faz nascer o intraduzível.
E eu tenho
esse teimoso apetite
que galopa pelo texto,
que se esbate
contra as jaulas da mesmice
e as coleiras do já visto:
em algum lugar
nas frestas da prosa
devem surgir as palavras
resgatadas da prisão da página,
pelo ato de se as ler.
As coisas vivem
pelo ofício do cotidiano,
existem de passagem.
Qual meu revide,
meu desagravo
- a desforra?
Essa intrincada construção
de frases que mesclam
esperanças malogradas
e felicidade efêmera,
que de fora parecem
imponderáveis e
intimamente desejam
que a lisonja possa me fazer
perdurar no eterno
da intensidade
de sua leitura.
20 comentários:
Fabrício... Um grito em palavras mudas, num silêncio cheio de barulhos e imagens...
Fez-me lembrar da poesia que transcrevo abaixo e que gosto muito:
A Palavra Mágica
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro, não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo minha palavra.
Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera'
Bjusss
Su,
Você enobreceu muito meu post. Drummond sabe como dizer dessa lida com palavras, dessa busca crônica, desse (quase) adoecimento de ter que dizer da melhor maneira. Escrever não é fácil, mas com um alento desses, até fica.
Obrigado pela visita! Beijo!
Boa tarde, poeta!
Assistindo ao Fantástico hoje, deparei-me com uma reportagem para turbinar o cérebro e uma das 'dicas' era aprender uma palavra nova todo dia e tentar inserí-la no dia-a-dia, em contextos que tenham sentido, claro. Aqui, hoje, aprendi duas. :)
Uma vez eu li não sei onde: do caos nascem os melhores poemas. A dificuldade em traduzir e documentar o que somos, dada até a insuficiência da linguagem, madrasta que nos limita, é arte, é vida, é morte. É nosso berço e nosso epitáfio. É a pequena morte num orgasmo.
Prazer imenso estar aqui. :)
Em que tipo de conversa eu vou encaixar 'glosa' e 'esbate', já é outra história.
Beijo.
Patrícia
Patrícia,
Li e reli tantas vezes seu comentário que acho que, por fim, perdi o sentido (mas ganhei outros) original do que você queria dizer. O segundo parágrafo é de uma poesia exemplar. Quisera eu ter meus textos como "pequenas mortes num orgasmo"; daria-me por satisfeito de ser escritor!
Quanto às palavras glosa e esbate, pelo menos a primeiro tenho uma sugestão de uso: toda vez que for explicar alguma coisa, diga - "vou fazer a glosa"... rs rs rs
Beijo e obrigado pela visita! Volte sempre!
É muito bom ser sua leitora!
E como já foi dito, sempre bom aprender novas palavras contigo!
Grande beijo!
Anne,
Eu que agradeço a gentileza de sua leitura, mesmo com a adversidade de palavras não tão fáceis.
[Mas eu continuo no meu propósito de 'acordar' palavras de seu sono de dicionário].
Beijo!
O que fazes muito bem! adoro isso!
Anne,
Obrigado, querida, pelo carinho e gentileza!
Estou descobrindo...
O rigor da construção de seus poemas "preveem" lacunas interpretativas que deverão ser preenchidas pela criticidade do leitor!!!
Por isto você afirmou sofrer do 'mal' de Melo Neto: 'a educação pela pedra"!
(E, como leitora, gosto de me exercitar nesta "busca"!)
Abraço, com admiração !
Andrea Marcondes
Caríssima,
... Depois de tantas leituras, privadas e públicas, você chegou ao essencial do que é me ler. Sim, é isso, meu escrever é uma construção - a quatro mãos, a quatro olhos - que interdepende de quem me lê. Todavia, o mal de Melo Neto vem mais da minha busca idiossincrática pela palavra exata.
Abraço, com carinho saudoso (e aquela admiração crescente)!
Fabrício querido,
descrevestes lindamente o que é sua escrita, mas tenho cá para mim que não se pode "ler um poeta", creio que lê-se na poesia o que dela reconhecemos em nós, portanto lemos a nós e não ao poeta, a este cabe guardar seus sentimentos quando mais parece expô-los e despertar em nós o que está bem guardado, um poeta despretensiosamente nos faz ler-nos. Nossa pretensão em tecer um comentário sobre um poema é caga, só revela a nós mesmos.
Um beijo
Van,
Concordo contigo. Interpretamos o que lemos, sempre que a poesia se nos convida. Mas há que existir o comentário, ainda assim, sob pena do poema morrer em nós. E nada que nos eleve deve perecer dessa forma, em nota menor.
Beijo e obrigado pela visita!
Ei Fabrício,
bom dia!
A finitude é uma condição, não uma escolha. Palavras escritas duram mais que nós. Um dia eu, você, os outros, seremos só leitura. Espero que falte muito.
Um beijo
Van,
Sei que somos perecíveis e que nossas obras restarão bem mais do que nós. Contudo, ainda teimo em não pensar no fim, pois gosto muito do durante.
Beijo!
É uma reprise? Se não me engano, já escreveu a respeito e, novamente, lembrei de uma amiga que, quando comecei a caverna, ia no seu blog e não entendia nadinha...rs - Ela também não entendia como ficamos amigos. Agora, passados alguns anos; continuo mantendo contato contigo - ainda que longe - e ela perdeu-se por aí...rs - Nem sempre é preciso se entender tudo.
Nanda,
É uma reedição. Revisada, sobretudo. E sim, esse é um tema que me angustia muito, por isso a volta a ele.
Essa sua amiga é um daqueles públicos que ainda pretendo alcançar. Fazer-me claro é o objetivo constante.
Abraço!
Amei cada palavra. Amei o ritmo do texto. Amei a sua fluidez e a força poética dos argumentos. Sem mais.
Bjs, Lei.
Lei,
E eu que pensava que não estava sendo claro. Obrigado pelo comentário!
Beijo!
"Ela" tao poderosa e envolvente. Ela é sua poesia também.
[Diana Coy]
D.Coy,
... Minha constante singradura de sentidos.
Obrigado pela leitura atenta.
Beijo!
Postar um comentário