terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Zarabatana


As recordações que me emboscam,
nesta hora em que se afadiga a tarde,
fazem sua pontaria
– certeira –
na ferida da saudade.

Coisas ínfimas encerram
o tempo entre vírgulas
: a voragem portátil
de cantarolar melodias
baldias pelas ruas na volta
para casa, qualquer que fosse
                    (meu repertório de lascas
                    de outras cacofonias,
                    apurado em reiteradas performances solitárias);
o perfume fóssil da primeira namorada
                    (incógnita Lilith, contra quem
                    fiz colidir minha lógica simplória
                    de apaixonado pela paixão,
                    seguindo todos os ritos,
                    cartilha de procedimentos fátuos);
a biblioteca em gestação
na coleção de quadrinhos
                    (a afinidade com as letras
                    revelando-se contraponto
                    à falta de tato com tantas outras coisas);
o fosso escavado na afasia,
que deixava a nu o que eu não revelava
                     (minha porção de cifras
                     que edificaram aquele adolescente acanhado).

Hoje, erro outros pontos
e arremesso meu corpo
a novos escopos.

Mas a mira é a mesma.


10 comentários:

Nanda disse...

Estava lendo e lembrando de um escrito que ouvi na novela Fera Ferida e vou levar pela vida... Pesquisando, alguns sites apontam Neruda como autor, mas não tenho certeza. De qualquer forma, lá vai: "Saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não foi embora, mas o amado já... Saudade é amar um passado que ainda não passou, é recusar um presente que nos machuca, é não ver o futuro que nos convida... Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade, aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos: não ter por quem sentir saudades, passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido... E disso, meus amigos, não posso ser acusado: vivi, sofri, me apaixonei por tudo que a vida me ofereceu!... Confesso que vivi!..."

Fabrício César Franco disse...

Nanda,

Ainda que não seja Neruda, eu fico muito contente com essa citação, pois faz contraponto à saudade de si - que é o tema do que escrevi. A saudade do outro, seja ele quem for, é o que nos molda e marca o gostar.

Meu abraço, e obrigado pela visita!

Anônimo disse...

Cantando a vida ainda que em lascas de outras cacofonias vamos seguindo como mero observadores, ativos seres em sombras amorosas de palavras nada reveladoras...

Fabrício César Franco disse...

Su,

O que não podemos é parar com a escrita. Por ela, desvendamos o mundo.

Abraço!

Anônimo disse...

Caríssimo POETA:
"Sentir saudade é trazer, mais perto ainda, tudo que a gente pensa perdido. SAUDADEAR... dizia ele." ( De: Vilma Guimarães Rosa, sobre seu pai, GUIMARÃES ROSA)
...................................
E, quanto à AFASIA, felizmente, somente ocorre, para você, no seu "desabafo poético"! Porque , sem dúvida, você pode afirmar, como Drummond:"A palavra nasce-me, fere-me, coisa-me, mata-me, RESSUSCITA-ME".
Grande abraço,

Andrea Marcondes

Fabrício César Franco disse...

Andrea,

Saudadeando eu escrevo a maioria dos meus poemas. E a palavra me propulsiona a um passo à frente, seja para um memorial ou para uma nova perspectiva...

Obrigado, sempre, pela leitura generosa!

Abraço, com imenso carinho!

Raquel Sales disse...

Fabrício,

Emboscadas de saudades são aventuras radicais, às quais me entrego com gosto... Constatar que aquilo que foi bom (ou ruim) passou, mas perdura, deixa-me no limiar euforia-pânico. Haja serenidade pra encarar tanta adrenalina...

Bj

Fabrício César Franco disse...

Raquel,

Invejo você, que sabe lidar melhor com a saudade do que eu, aparentemente. Sempre me sinto sitiado por ela, quase sem ar.

Obrigado pela visita!

Beijo!

Rafaela Gomes Figueiredo disse...

Lindo!!!
Achava estranho o fato de a minha mira ser a mesma de há tanto tempo. Mas isso, assim dito aqui, com essa riqueza e beleza, até me pareceu o mais certo.
Acho q devem mudar os vieses, né?

Beijo, caríssimo!

Fabrício César Franco disse...

Rafaela,

... Nossos vieses (e os alheios também, vistos por nós) merecem constante mudança de perspectiva. Quem sabe se, numa viravolta dessas, não encontramos o que nos é intátil e inefável: a assim chamada Verdade?

Um beijo!

 
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