Hábito,
nossa magra porção de coisas
que se sucedem,
divindade de tudo o que é
monótono à nossa cognição
e que labuta na previsibilidade
dos fatos reiterados.
Quando eu abro o zíper
da manhã num vão de porta
entreaberta ao primeiro sol, eis
: rarefeito como sempre.
E eis na correspondência –
as contas habituais
e uma carta de minha mãe,
lida na ligeireza e propósito
de uma saudade que se atropela
na digestão precoce de um meio-dia.
Eis ainda
na conversa à deriva dos lábios
(essa parede delgada
e impermeável
que nos atravanca a prosa),
que nos aproxima
e nos distancia
no supermercado,
na parada de ônibus,
nos portões da escola,
onde confundimos
convivência com amizade.
Hábito,
nosso pequeno nume dos intervalos
entre desastres e deslumbres,
que nos concede o fausto de sua praxe,
o pouco
com que nós aprendemos a contar,
nós o louvamos
à repetição:
por todos estarem em casa para o jantar,
pelo status quo,
pela lua que regressa
como uma segunda chance
depois da chuva,
por essas últimas horas antes do sono,
quando recontamos o dia
um para o outro,
e pegamos o livro já lido
inúmeras vezes,
cada vez tão familiar
e tão inexplicavelmente
outra
e original.
Escrito por
Fabrício César Franco
Assinar:
Postar comentários (Atom)
10 comentários:
Poeta,
Mais uma vez, gostei do que lii por aqui. Me dou muito bem com a rotina, os hábitos, a repetição, sobretudo quando dizem respeito aos encontros contigo, aos sorrisos. Minha dose diária de paz.
Beijos,
Indie
Indi,
Obrigado pela visita, pelo comentário. A repetição pode ser um bom trampolim para novos saltos, um bom refúgio enquanto tomamos força para novas atitudes diferentes.
Beijo, com carinho!
Poeta,
Hábito é coisa estranha... Contraditória... Nem boa, nem ruim... Mas jamais sinônimo de mesmice...
Habituar-se às aventuras, por exemplo, é absoluta falta de rotina. Habituar-se a conhecer gente pode trazer uma surpresa (boa ou ruim) atrás da outra...
Por vezes, é necessário habituar-se ao inesperado, ao novo, principalmente, quando uma pequena irregularidade muda nossos planos...
Que a vida nos permita novos (e melhores) hábitos.
Bj Inté
Caríssimo POETA,
Escritores, como você, nos fazem dois benefícios: apreciar a ARTE da PALAVRA e analisar o que vivemos. Seu poema me fez lembrar a "letra" de uma música francesa:"Comme d´habitude" , de Claude François. Mas suas referências são menos depressivas. Melhor assim!
Meu abraço, com admiração,
Andrea Marcondes
Raquel,
Concordo totalmente, por isso que resolvi "sagrar" o mesmo, a rotina. Ela pode (e deve) ser cheia de curvas, desvios e atalhos. E são nesses trechos que ela nos leva a aventuras imprevistas. Essas, que fazem a vida valer a pena.
Beijos e obrigado pela visita!
Andrea,
Não conheço a música citada. Aliás, meu conhecimento musical do "chansoniere" francês se limita a Dalida, Charles Aznavour, Joe Dassin, aquela música das neves do Kilimanjaro e um e outro artista pop da década presente. Vou procurar me inteirar sobre essa letra, em particular.
Sim, tento não ser depressivo. Melhor ser realista, vendo que é possível buscar e trabalhar pelo mais leve.
Abraço, com saudade!
E... descoberto o segredo de viver intensamente: fazer o mesmo sem a mesmice da simples repetição e sendo, ainda assim, original.
Eliana,
Obrigado, mais uma vez, por deixar suas pegadas por aqui. Fico muito agradecido.
Um abraço!
Que belo, Franco!
A cadência simbolizando esse compasso cotidiano, tiquetaqueando gestos, numa harmonia plena, isenta de agonias (o q sinto um pouco em rotinas rs).
Obrigada por estes teus versos sempre tão incitadores à beleza das coisas...
Bjo
Rafaela,
Que bom ter sua visita por aqui!
A rotina pode ser agoniante, quando se repete "ad infinitum", sem esperança de saída, de mudança, por menor que esta seja. No entanto, se a domamos, e nela imprimimos direção (alguns diriam, velocidade também), esta não fica tão difícil de lidar. E nem é tão complicado assim, basta aceitarmos que certas coisas se repetem, até mesmo para nosso lidar mais fácil com a vida.
Beijo e volte sempre!
Postar um comentário