sexta-feira, 15 de dezembro de 2023 0 comentários

Totem


Sou o vento que respira
sobre a melancolia do mar;
sou o abutre nas rochas,
rendido aos evangelhos do equilíbrio;
sou um golfinho e mergulho
nas profundezas da minha alma;
sou um desenho numa árvore,
sem compromissos além
da minha própria forma;
sou uma gota de óleo na água,
condenada a permanecer inabsorvida;
sou o esplendor do silêncio,
que é mais do que a palavra;
sou a imitação da rosa,
pendida na angústia da felicidade
de um buquê de noiva;
sou a cimitarra do quarto crescente,
ceifando este fiapo de noite;
sou tudo o que eu nunca lhe disse
dentro dessas margens.

domingo, 5 de novembro de 2023 0 comentários

Mônada


Caminho em espirais
        rumo a lugar algum.
                Tenho meus compromissos

moldados na lentidão,
        sem os velhos embustes
                que me venham por ajuda.

Tenho essas reticências
        que se alastram.
                Eu aguardo.

Mas o que é essa vigília,
        se no final das contas
                o que almejo é o termo

do desvelo e precisamente
        no meio desse tempo
                é onde me espreita

o significado das coisas?


segunda-feira, 2 de outubro de 2023 0 comentários

Relicário


Água trazida como relíquia num cálice.
Bebi metade num gole contínuo
– não por avidez,
mas porque o dia estava quente.
Aqui,
todos os dias são quentes,
aliás. Então,
esbaforido, o telefone tocou
– quem, não me lembro.
Sustei o trago.
Coloquei o copo
para obscurecer-se no balcão
enquanto eu me comovia
com alguma incumbência
proposta pela minha impressionabilidade.

Estive fora o dia todo.

Quando voltei, lá estava –
esquecido, escorregadio,
num anel escuro de descuido
– evidência muda da minha sede remota,
agora à temperatura ambiente,
metade de puro nada.

Não foi tarefa pouca,
nesse momento,
alcançá-lo e sorver tudo.


domingo, 3 de setembro de 2023 0 comentários

I Ching


No jogo das moedas,
ou fico ou passo.

Melhor:
                 ou fícus
                 ou pássaro.

terça-feira, 1 de agosto de 2023 0 comentários

Bula



Cumpro a sina,
sem dor
nem amargura:
plausível tudo.

terça-feira, 4 de julho de 2023 0 comentários

A lição do labirinto


Não me fio
na linha que percorro
: me busco e me perco
sem mapa mundi,
nas longitudes de mim.

Minhas trilhas,
traçadas em passos,
são histórias
dos meus descaminhos.

domingo, 18 de junho de 2023 0 comentários

Destino


Perco-me
mais e mais,
assaz desatinado
para ter noção alguma
de qual é o norte
dessa bússola,
indo parar quase
exatamente
onde eu queria
estar.

quinta-feira, 11 de maio de 2023 0 comentários

Palimpsesto


)
Ou todo homem nasce original e morre plágio.
(

Sou refém de minhas referências,
do que li ao longo da vida –

das bulas de remédio
aos compêndios da alta ciência,
folhetos,
folhetins,
antologias.

Estratos de palavras
acumulam-se
e vão se sedimentando em mim,

a ponto de se mesticizar
tão de todo
que é infactível
demarcar os confins

entre a coletânea e o ineditismo.
Como separar
as frases que plantei
daquelas que colhi
em florilégio alheio,
se crescem no mesmo
buquê de vocábulos?

Existo nessa folhagem,
entre o abrir e fechar de páginas,
redigindo capítulos
de um livro vivo,
essa casca tênue que sou,
reescrita
todos os dias.

terça-feira, 11 de abril de 2023 0 comentários

Nuanças


Nossas despedidas cotidianas
somente foram ensaios para a cena final
: esse adeus numa manhã quarada de maio.
Em tinta, a tez do luto sobre o papel.
Sou todo ao convulso. Procuro razões.
Não há mais como
identificar a cor sem
embalsamar o camaleão.
O dia estaciona e a realidade
desce em mim feito avalanche.
Já não somos. Fomos.


segunda-feira, 6 de março de 2023 0 comentários

'Ars domestica'


Sol que vaza por persianas,
um calor senegalesco.
É inútil
dissimular essa melancolia
que invade a tarde.
Crusoé das ilhas de concreto,
tenho a trégua dos livros,
as dobras de sombras nas paredes,
o tempo que isso leva.

Citando Pound,
“a beleza é lenta”.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023 0 comentários

Na comissura entre o texto e o leitor


Não é o curso irrefreável da natureza,
sequer uma epifania ou a contrafação
de um diamante. É, se tanto, uma busca
de resposta, aflição epidérmica que só
é abrandada ao rebojo do que escrevo.
Pois tudo o que se diz tende (e propende)
ao poema, e à tona de um momento
qualquer existe o alento da poesia.

Palavras são biodegradáveis e o texto é
fugaz no espaço a que se reduz nesse ruído
de fundo, grande supermercado cognitivo.
Eu escrevo na tentativa de gerar uma flor
no bocejo de quem me lê: atenção raptada
e mantida refém pelo tempo de um enquanto.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023 0 comentários

Ode (mínima) à inércia


Estático,
                  extático.


 
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