quarta-feira, 13 de maio de 2020 0 comentários

Fronteiras


)
do Diário do Confinamento
(

Cativo, na perene vontade de espaço,
estou em degredo em terras próprias:
perímetros que me cercam e não trespasso.

A ocasião me ensimesma em limites:
       ao norte, minha agastada sensatez;
       ao sul, esse medo crescente;
       a leste, o encargo econômico;
       a oeste, a torpeza geral e indiferente.

Balizas que me abrangem num duro abraço 
soberano de um domínio que me entedia
esse confim cada vez mais escasso.

terça-feira, 12 de maio de 2020 0 comentários

Notívago


)
do Diário do Confinamento
(


Tarefa mais que penosa:
decodificar os silêncios
que a vida usa para dizer.

Eu me reviro na escuridão
— a percepção sem restrições de forma —
mas a indeterminação permanece.

A estreiteza no peito intraduzível,
esse pânico persecutório inescapável:
— até quando?


segunda-feira, 11 de maio de 2020 0 comentários

Pictórico


)
do Diário do Confinamento
(

Um pouco Mondrian:
a vida dentro de limites.

Na escassez deste espaço,
a irritação come minhas beiradas
até quase me fazer só meio:

        coração fora do eixo
        bate no desconforto do peito apertado,
        predizendo uma tempestade no horizonte,

        como se guardando lugar
        para uma aflição ainda mais infinda.

domingo, 10 de maio de 2020 0 comentários

Disjunto


)
do Diário do Confinamento
(

Pela janela com gradis,
meu jardim alheio:
um buquê de ixoras aflitas,
um crisântemo aborrecido,
lantejoulas de teias de aranha
e a melancolia que se arrasta.

Tempo em pausa, um respiro,
algemando o pensamento
num embornal de cores.

sábado, 9 de maio de 2020 0 comentários

Ramerrão


)
do Diário do Confinamento
(


Quatro paredes em todos os cômodos
enclausuram-me na usança de todo dia.

Nem por isso pareço compreender melhor
o que eu vivo ou o que se passa:
continuamente cirandado
por preconceitos fósseis,
arrogâncias puídas
e aquela grandiloquência espalhafatosa
(a verborragia alucinada!).

Até que,
exausto do esforço de me insurgir
contra a bruta indiferença do momento,
capitulo frente a escolha que me é dada:
ou lavo a louça que ficou de ontem,
ou passo a roupa que já secou.

sexta-feira, 8 de maio de 2020 0 comentários

Involução do espécime


)
do Diário do Confinamento
(

Você, 
que transforma a angústia
em saudável perspicácia e defende tudo
o que compreende em palavras:
   sua condenação virá pela língua,
   na erosão lenta, mas indiscutível
   que dimana de cada decepção.

Você,
que consome informações
em crescente desgosto, sem ao menos
ter a percepção de como tempo devora
só os desamparados e se dá a si mesmo
seus próprios mandamentos –
[não sou -fóbico ou -ista 
(insira aqui seu prefixo), mas...]:
   atente para o momento em que não fizer sentido
   a natureza das coisas crispadas em seu íntimo.

Não é preciso se apressar, nem jogar fora
a verdade mais persistente:
“amai-vos uns aos outros”,
“somos todos iguais perante a Lei”.
Só se lembre bem de como era a vida antes:
obscurantismo, ignorância, medo
da escuridão como devorador de gentes,
o trovão que era reprimenda dos deuses,
um panteão inteiro a idolatrar em sacrifício.

Diga-me então como você é capaz
de chegar a este ponto, para trancar
as portas da história e não se reconhecer
no seu povo – os outros! – e como desaprendeu as lições.

quinta-feira, 7 de maio de 2020 0 comentários

Aperto


)
do Diário do Confinamento
(

São dias de parede branca 
e gestos anêmicos pontuando a reclusão:
as quinas dos móveis rigorosamente perfiladas,
a bagunça dos sentimentos em confusão.
Movo-me em lapsos, sem pressa nem propósito,
cozinhando em fogo lento a adiada refeição.
Mas eis que a vontade moribunda
à revelia dessa condição,
quer abrir as janelas (como se o ar fosse puro)
e a porta (sem tanta inquietação),
pois existir assim é muito pouco:
vida minguada em constante contração.

quarta-feira, 6 de maio de 2020 2 comentários

Simplório?

)
do Diário do Confinamento
(

Lembranças se propagam como fungos
e penetram fundo nos ossos da saudade:
o menino em mim recorda de quando
era simples separar o bem da maldade –
a maioria seguia com suas vidas,
sem fermentar tanta perversidade.

Contudo, talvez não fosse mesmo assim.
Talvez fosse tão somente ingenuidade.
Provavelmente a antipatia era ampla
e se disfarçasse a hostilidade.

Só sei que está sendo difícil 
esperar o melhor dos outros:
muitos berram sua raiva da alteridade
e se fecham em ficções egoístas,
descomprometidos com o que é de verdade.

terça-feira, 5 de maio de 2020 0 comentários

Narrativas


)
do Diário do Confinamento
(

Nesse tremeluzir de viver restrito pela rotina,
ocupamo-nos com a busca de certezas que não há.

Confundimos acaso com escolhas,
nossos rótulos e moldes com as coisas em si,
os registros de nossa lembrança com história.

Assim, não é bem o que nos acontece —
mas o que sobrevive
aos consecutivos naufrágios
de nossas vontades, cogitações e memória.

segunda-feira, 4 de maio de 2020 2 comentários

Da janela

)
do Diário do Confinamento
(


Da minha janela não dá para ver muito.
Já tive janelas melhores, em lugares piores.
Também já nem tive janelas, tão-só
olhando para dentro: oclusos arredores.
Mas o que é janela é senão um modo de olhar?
O resto são pormenores.

Da minha janela não dá para ver muito.
Continuamente pouca coisa, quase nada.
Os mesmos rituais de todo dia,
a vida pelo crivo do familiar desvendada.
Única mudança: perceber 
nossa esperança mais e mais precarizada.

domingo, 3 de maio de 2020 0 comentários

Informe


)
do Diário do Confinamento
(

Indeciso, titubeante, atrapalhado.
O contrapeso das dúvidas povoa meus dias.
No banho, tento caber
no magro diâmetro da água,
mas sobra corpo, ando
sobrando demais.

Nessa vida de parêntese sem par,
encerro o que continua inaudito —
num mundo em conta-gotas,
cheio de cismas e alarmes,
tudo é transitório, amorfo e impreciso.

sábado, 2 de maio de 2020 0 comentários

Litania


)
do Diário do Confinamento
(

Como tratar trivialidades num poema:
clarear os fatos abrindo as janelas
e deixando o silêncio
engordar os cômodos da casa.
Escrever — quase uma solução —
pois a palavra tem sido o lugar
onde levanto abrigo.
Adentro,
esse grande escuro pertencente a todos,
minha trajetória mínima se distende
e se confina dentro dessas margens.

sexta-feira, 1 de maio de 2020 0 comentários

Percepção


)
do Diário do Confinamento
(

Fato primário e brutal:
mesmo quando nada está, algo acontece.
Quietude também é progresso,
ainda que ardentes devotos da produtividade,
baralhemos ocupação com eficácia
e movimento com avanço.

Coisas tantas
que achamos
que entendemos,
                          até que
                          sustamos.

 
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