sábado, 9 de dezembro de 2017 11 comentários

Procura-se



Procura-se um amigo. Não precisa ser tremendamente especial, basta ser humano. Precisa saber falar e calar – sobretudo, ouvir. Tem que gostar de poesia, da madrugada, do sol, da lua, do canto dos ventos. Deve ter ressonâncias e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar. Não é preciso que seja puro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo, e no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Deve gostar de ruas desertas, de poças d’água, de beira de estrada.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos e dos diferentes, e que saiba conversar sobre qualquer coisa. Um amigo para não enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, anseios e realizações, sonhos e realidade. Um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque nos chama de amigo e se comove quando chamado assim. Alguém que nos dê a consciência de que ainda estamos vivos.

Será que essa pessoa é você?

segunda-feira, 20 de novembro de 2017 2 comentários

Desconforto



A esperança é crônica,
o medo é agudo
e a chance azeita o motor dialético da história.

Avançamos, a esmo,
tateando no escuro.
Avançar é uma infidelidade –
para com os outros, com o passado,
com as ideias que cada um faz de si.

Quem sabe se cada dia não devesse conter,
pelo menos uma infidelidade essencial?

Seria uma atitude otimista, esperançosa,
que garantiria a crença no futuro –
uma declaração pública de que as coisas podem ser melhores,
e não apenas diferentes.

Ao invés,
nutrimo-nos de expectativas malogradas,
malsinamos a crença, no sobressalto
de que é presa a alma inquieta.
Fomos treinados nos rudimentos da linguagem
da fé apenas como uma precaução,
não falamos o idioma, não vamos além
da reticência de uma interjeição.
Claudicamos outra vez no arrependimento,
sentimento duplamente estúpido
: por trabalhar com uma matéria-prima morta (o passado)
e por gerar um resultado danoso (autocomiseração e raiva).

Não há como enfiar o gênio de volta à lâmpada,
o dentifrício de volta ao tubo.

Mas qual o quê?
O homem é um animal que se justifica e,
na pacatez burguesa de uma tarde de domingo,
aceita a cangalha do carecimento,
a insuficiência das desculpas impotentes.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017 4 comentários

Acústico


Jazz do coração: 
esse meu embaraço 
que te deseja.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017 4 comentários

Repensando o pesar


1.
Agradeçamos aos nossos enganos 
e os abençoemos por sua prosa terrivelmente vulnerável. 

2.
Nós deveríamos lhes oferecer nossa gratidão, 
admiração por nos dar nossas fissuras 
e nos cicatrizar com embaraço, 
no lampejo quente de uma confissão. 

Obrigado, transgressões, 
por nos fazer 
tão direitos 
em nossas imperfeições. 
Menos defeituosos, 
nós poderíamos ter nos desviado e, 
aptos demais, 
procurado outros caminhos. 

3.
Ainda que nosso engano perfeito 
tenha vindo diretamente para nós, 
para dentro de nossas vidas ordenadamente atravancadas, 
(que até poderiam ter estado 
fechadas, adormecidas, mas 
ao invés ficaram acordadas toda a noite, 
esquecendo da pílula, do livro bom, 
das oito horas necessárias), 
mantendo nosso coração atordoado 
e aturdindo – este engano é nosso!

4.
Quão infeliz a perfeição 
pareceria, ali na estante, 
sem sequer uma fenda, 
sem esta quebra crítica 
– esta queda – 
este súbito e emocionante desenho 
que acontece 
de ser 
nós.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017 2 comentários

Parentesco



Tal pai,
tal filho: 

estribilho?

sexta-feira, 7 de julho de 2017 2 comentários

Coroa de espinhos



Sei que esta felicidade é provisória.
Receio uma tormenta,
um pequeno apocalipse.
Os nervos retesados
como arcos de violino,
alarmes prontos a soar.
O pessimismo é um mal de família.
Não acreditamos em arrebatamento
que dure mais do que cinco minutos.
Sempre um preço caro demais a pagar,
um problema insignificante
que se revela catastrófico,
uma cláusula não lida
que nos constrange
a anos de preocupação.
Há um quê de pessimismo exacerbado,
confesso, mas obstinadamente comprovado 

vezes sem conta.

domingo, 18 de junho de 2017 4 comentários

Zero


A modorra se alastra
feito líquido num mata-borrão.
A vida entrando numa faixa de Moebius –
os segundos se repetem infindavelmente
num contexto intercambiável.
O tédio impele o pensamento para outros planos,
onde espreito universos distintos
nos gravames desta reunião.

Mas a voz monocórdia ainda ecoa
tal metal numa incude, vezes repetidas,
como se mais do que dizer,
quisera extasiar-se em seu próprio timbre.
Ligo meu isolamento acústico e abstraio.
Adoto o balançar aquiescente de cabeça,
os murmúrios da boca semifechada,
o olhar entibiado escondido atrás de uma falsa atenção.
Nunca minha caneta explorou tanto
os enleios da inspiração, os folguedos do nada.
No colóquio do meu desinteresse com a falta de assunto,
o desperdício da manhã:
tarda autoquíria da alma.


quarta-feira, 17 de maio de 2017 4 comentários

Epifania

                                                          
)
Uma meia-noite de outono junto às janelas
(
 
A vida dentro
dos fones de ouvido
: o som
moldando-se
às profundezas
dos meus labirintos,
as pernas fluindo
pelo quarto,
o mover-me
para lugar
nenhum –
paisagem sem dúvida
alguma.

 
domingo, 16 de abril de 2017 4 comentários

Diverso


De vez em quando, 
precisamos de um milagre às avessas 
para desnudar a linguagem, 
fazê-la durar por um minuto
: tão somente 
a vasilha com o vinho – 
uma recusa sacramental em se multiplicar, 
reclamando 
através disso 
um único pedaço de pão, 
um único peixe.

terça-feira, 14 de março de 2017 4 comentários

Segredo de confissão



Suposto que não me sei depois,
ouso a importunidade
e me escorro pelos olhos.
Meu páreo não é este
(ser honesto sem ser cruel),
mas tenho comigo:
no escrúpulo desse sobressalto,
também seu olhar de pólvora,
para sempre igual e mesmo,
capitula à irremissível verdade:

tenho ossos demais numa alma apertada.


 
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