quarta-feira, 26 de dezembro de 2018 2 comentários

Pois então


Perdemos o trem, não o rebolado.
Apostamos no humor contra todos os males.

Dos clichês, fazemos um achado,
e driblamos o lugar-comum nos detalhes.

Amor e arte fermentam o pão de todo dia.
Pouca ou muita, a fé move cordilheiras de medos.

Prosa de vez em quando nos falta, nunca poesia.
A alegria até arrisca raízes nos cotidianos enredos.

O chão é duro, tudo exige paciência e atenção.
Nosso engenho engana a sorte e se traça na escrita.

No final do ano, a esperança nos visita na contramão
e nos impele: insista, refaça, repita.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018 4 comentários

Das tempestades de novembro


Quem pôs a vassoura atrás da porta do invisível? 
(


O céu é da cor de lápides.
O temporal parece se alçar das ruas
como maré nociva, toldando
as distâncias, quilômetros
que se estendem por diferentes cartas geográficas,
correndo por trilhos
numa velocidade cada vez mais
estridente, até findar
num lamento que a longitude engole.

Ficamos como coisas minúsculas
num Atlas infindo,
abscissas se estirando à eternidade,
o espaço, de tão longo,
transformado em tempo.

Brevíssima visita,
você foi embora num mudar de clima
e a chuva é toda na primeira pessoa do pluvial.


segunda-feira, 15 de outubro de 2018 2 comentários

Instâncias

1.
Seja meu termo, 
dado boca a boca, 
como um beijo à força, 
que os lábios secos 
racham-se por mais. 

2.
Seja meu anátema 
nessa pugna de contrários, 
delinquindo meus dogmas, 
totens tão bem erigidos 
à vacuidade das ideias postas. 

3.
Seja minha dor, 
bálsamo ao reverso, 
a que o corpo lembra como um bordão 
a cada novo mo(vi)mento, 
em irremissível memória. 

4.
Seja a centelha matemática, 
no espaço vário 
desse parangolé mazombo 
que chamo de vida.

sábado, 22 de setembro de 2018 2 comentários

Diamantina


Você não é nada simples.
A não ser que aceitemos
que labirintos são construções simples.


Um diamante multifacetado é simples?
Só aos olhos de um não entendedor.

Para um ourives,
é um milagre da geometria.

Para um físico,
é o carbono transmutado em brilho e luz.

Mas, para mim,
um menino que se pasma
com o que não entende
representa o brilho enclausurado
numa dureza externa.

domingo, 12 de agosto de 2018 2 comentários

Encontro marcado


Estou espreitando
                                     as horas: 

o estreitar no peito
                                    tem o seu nome.

segunda-feira, 9 de julho de 2018 2 comentários

Exegese


No léxico das coisas, plural é apenas
o número gramatical que expressa mais de uma unidade,
como revelam
– singulares –
os dicionários.


segunda-feira, 18 de junho de 2018 2 comentários

Causa mortis


Telefone ocupado,
linha cruzada,
voz silenciada,
caixa postal lotada,
quota extrapolada,
carta extraviada,
endereço errado,
telegrama atrasado,
jornal não veiculado,
mensagem desviada,
garrafa naufragada,
tambor calado,
livro inacabado,
disco arranhado,
energia cortada,
ferrolho trancado,
ônibus lotado,
voo cancelado,
trem descarrilhado,
pneu esvaziado,
estrada bloqueada,
atalho obstado,
mapa rasgado,
bússola quebrada,
validade expirada,
erro não calculado,
confiança ludibriada,
alma espatifada,
amor terminado,
caso encerrado.
 
segunda-feira, 21 de maio de 2018 4 comentários

Kama Sutra


A carência é
o maior
afrodisíaco.

terça-feira, 10 de abril de 2018 8 comentários

Lá fora


Desde que comecei a escrever
(e provavelmente muito antes disso)
as palavras “lá fora” parecem carregar
mensagens distantes, como se um estranho
poder emanasse delas quando eu as digo
sem pressa ou as escrevo, cedendo ênfase
igual às duas palavras curtas.

Ao longo dos anos,
fui aprendendo de onde vem esta carga,
de que paisagem deriva seu clarão sobrenatural.

Em memória, eu retorno
à minha cidade natal e vejo,
da janela de casa de minha avó,
minha mãe partindo para o trabalho,
aquele gosto estranho de mundo
amplo se estendendo
sem fim para além
das minhas possibilidades de despedida.


quinta-feira, 8 de março de 2018 8 comentários

Para um oito de março


Poemas há
que só podem ser escritos por mulheres.

Poemas de útero,
de úbere.

Poemas em curva,
labiados.

De uma sensualidade telúrica,

que traz no ventre
a possibilidade do verbo
fecundar outro corpo.


domingo, 4 de fevereiro de 2018 4 comentários

Quintessência


Amo a mera existência
da palavra fim.
Complexíssima ideia
em mínimo termo:
uma sílaba.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018 4 comentários

Calado (quando doem as palavras)


Minha voz dorme “em timidez,
envolta na faringite que veio
de visita no início da semana”.
O silêncio adentra minha vida
com truculência, se faz compulsão,
nada há que eu possa fazer.
Refém da afonia,
meu vocabulário restrito,
engulo o não-dito
como quem rouba uma fruta e,
como criança dando às coisas outro nome,
refaço o mundo em letras mudas.

Natural sentir-me triste,
dia nublado.

Não se guardam palavras.
Quando poupadas, decompõem-se
na própria avareza. E doem
de o cabelo cair,
de o olho arder,
de querer vomitar.

Dói de respirar,
suspiro de nimbo
para fazer chover.
Inevitável
: alma alagada.

 
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