quinta-feira, 30 de abril de 2020 0 comentários

Cangalha


)
do Diário do Confinamento
(

A gente vai aceitando as coisas, todo dia,
até que se concretizam em couro de provérbio:
de estória ou fanfarrice à razão absoluta.
Sedimento repetidas vezes assentado, lia,
e ainda assim, ecoamos convictos:
contra a praxe não há disputa.
Ofendemo-nos com as verdades da minoria
que fustiga o instável alicerce de nossas fés
e prosseguimos nessa pirraça resoluta.
Até que chega o momento, todavia,
quando a vida (a morte?) pulveriza tudo
e só nos resta continuar na labuta.

quarta-feira, 29 de abril de 2020 0 comentários

Números


)
do Diário do Confinamento
(

Entrementes, no quebranto das notícias,
o extermínio galopante, implacável.
A fatura cruel de eleições sinistras
no recenseamento do luto inviável.
Sem adeus nas covas a granel,
a ferida fica aberta, inexplicável.
A morte virou estatística,
um desmazelo indesculpável.
Perdemos vidas, não cifras,
e não há planilha que nos seja razoável.

terça-feira, 28 de abril de 2020 0 comentários

Óbito alheio


)
do Diário do Confinamento
(

Sua explicação
esclarece,
mas o medo não
esvanece.

Não que acrescente
meu comentário
ao estritamente
necessário:
nunca sabemos quantos se vão
naquele que perece.

segunda-feira, 27 de abril de 2020 0 comentários

Intoxicação


)
do Diário do Confinamento
(

O entusiasmo é uma silhueta momentânea:
a dança faminta das notícias logo me paralisa.
A esperança envenenada pela instabilidade 

                                                                             [das coisas
depressa se torna fel, desamparo, ojeriza.


domingo, 26 de abril de 2020 0 comentários

Fosco


)
do Diário do Confinamento
(

Tiro meus óculos e o mundo
abranda prontamente:
as quinas dos móveis,
o rosto cansado no espelho,
as notícias ruins no jornal.

sábado, 25 de abril de 2020 2 comentários

Alcance


)
do Diário do Confinamento
(

E não é que passamos a vida tentando discernir
onde terminamos e o resto do mundo começa?
Extraímos da simultaneidade do existir
essa imagem congelada e sem pressa,
sustentando ilusões de permanência,
de seres lineares vivendo em congruência:
vidas que se prorrogam em falha coerência.

sexta-feira, 24 de abril de 2020 0 comentários

O vizinho


)
do Diário do Confinamento
(

O vizinho sabe
nada além
do que se sucede em conflito.
Disposto e armado
da retórica mais vil,
quer catequizar todos no grito.
Estratégia de marketing ou gafe,
repete chavões reacionários,
antes vomitados por seu mito.
Chauvinista e fanfarrão,
cospe imposturas preconceituosas
quase tendo um faniquito.

O vizinho vocifera disparates
como se, para respirar,
isso fosse requisito.
Abrutalhado em sua mediocridade,
renega tudo o que não entende:
ciência, para ele, é delito.
Apóstolo do obscurantismo,
brada que sua opinião vale tanto
quanto todo livro escrito.
Cúmplice de impiedades,
vilipendia sua companheira,
(esse seu esporte favorito).

O vizinho, talvez, também,
seja alguém que more aí perto,
em seu distrito.

Afinal,
quem hoje não conhece
alguém assim descrito?

quinta-feira, 23 de abril de 2020 0 comentários

Sede de sal


)
do Diário do Confinamento
(

A razão da minha aflição se dissipa,
sepultada nos sulcos do fato em si:
sou plateia para hipocrisias,
audiência para pesares,
público de solidão.

Minha agonia é raquítica,
enquanto tantos se afogam na asfixia —
grão de sal submerso na alvura do leite,
o brancor de um, absorvido no outro.

quarta-feira, 22 de abril de 2020 2 comentários

No viveiro


)
do Diário do Confinamento
(

Aqui está a saudade e a tristeza de uma vida
que era minha e da qual eu não queria
que assim se estilhaçasse tão abruptamente.

Tal a trajetória de um peixe no aquário,
atravancada pelo vidro,
a sina é continuar,
apesar de,
até.


terça-feira, 21 de abril de 2020 2 comentários

Posologia


)
do Diário do Confinamento
(

Tentamos ser tudo de uma só vez:
nossos nomes e sobrenomes,
nossa solidão e nossa coletividade,
nossa ambição afoita e nossa esperança cega,
nossos amores
não correspondidos
e parcialmente aceitos.

Nossas vidas perpendiculares
configuradas em paralelo,
não nos gráficos austeros da biografia oficial,
mas em diagramas de múltiplos lados
e pontos de vista.

Vidas que se tramam com outras
e dessa tapeçaria surgem pequenas verdades:
contra a convenção e o coletivismo irracional,
cada um sabe a dose que lhe envenena ou cura
e a solidão que lhe é companhia ou agrura.

segunda-feira, 20 de abril de 2020 2 comentários

Meio fôlego


)
do Diário do Confinamento
(


Nuvens difusas alinhavadas no azul,  
o dia propondo suas tramas:
a temporária diluição da angústia,
a brandura em miligramas.

Um vestígio de sossego
na precariedade que me habita.
O medo ainda avinagra a alma,
mas a respiração não está aflita.

Ouso até crer que é possível
suportar esse pranto que não vaza,
ignorando a coação para sair,
não desistindo de me aguentar em casa.

Diante das minhas certezas precárias,
o silêncio honra minhas perguntas com as dele:
o que será daqui para frente?
Melhor esse sentido? Ou aquele?

domingo, 19 de abril de 2020 4 comentários

Dos copos


)
do Diário do Confinamento
(


Admiro a amnésia dos copos.
Lavados, enxugados, reusados.
Deslembram de sua água,
                              seu suco,
                              seu café.
Recebem e devolvem
quase tudo
que lhes foi dado,
sem rancor e sem remorso.
Guardam para si
só o ínfimo do sucedido,
que desaparece
antes
do próximo gole.


sábado, 18 de abril de 2020 0 comentários

Solipsismo


)
do Diário do Confinamento
(

Só eu existo, por trás dessas paredes.
Adentro trajetórias que se intersecionam,
mas sempre se voltam para mim.
Aqui. Sem escape.

sexta-feira, 17 de abril de 2020 2 comentários

Noturno



)
do Diário do Confinamento
(

Antes dessa terrível solidão,
apenas outro silêncio.
Um silêncio do depois, uma vez
que as cadeiras foram viradas sobre as mesas
e as luzes, todas, foram apagadas.

É tarde e nem o vizinho insone
caminha sobre minha cabeça.
Pela cortina, de pé, só testemunho
o acenar dos galhos das árvores.

Nossas esperanças, nosso porvir,
nossas ansiedades e pavores,
nossas noites sem dormir,
vão se desvendar
— um dia! —
como realmente são:
vento que desbasta
galhos ao relento.


quinta-feira, 16 de abril de 2020 4 comentários

Espera


)
do Diário do Confinamento
(

Dizem que o tempo é o solo
no qual podemos florescer.
Contudo,
ele mal passa, vagarosamente:
a demora fronteiriça ao vazio.
Nossa floração, assim,
mais e mais distante.

Dizem também que é preciso
dar chance à espera.

Espera,
palavra mais descabida:
se é nome,
mastiga com dentes de agulha
a incerteza do que será;
se é ordem,
é saber de coisas que serão.

quarta-feira, 15 de abril de 2020 2 comentários

Cena


)
do Diário do Confinamento
(

O silêncio, lá fora,
farsesco e performático,
não inspira confiança:
há a textura de uma guerra
nos interstícios do dia.

terça-feira, 14 de abril de 2020 0 comentários

Valia


)
do Diário do Confinamento
(

Em tempos de crise,
revelamos nossos valores:
enquanto uns ofertam sua serventia, 
outros só precificam a vida.

segunda-feira, 13 de abril de 2020 2 comentários

Mundos


)
do Diário do Confinamento
(


Lá fora, o medo e a espera. Do pior.
Aqui dentro, meu privilégio de estar
na frágil segurança do meu pequeno mundo:
livros, internet, comida na geladeira,
aquele incenso de sândalo que nunca abri.

Lá fora, a dúvida e a desinformação.
Aqui dentro, do que se lê ou ouve
é preciso filtrar e filtrar e filtrar,
até que a incerteza esteja em doses palatáveis
e não nos envenene com conspirações
além da conta.

Lá fora, teimosia e veleidades, mesquinhez e egoísmo
dançam, mãos dadas, rosto colado,
disseminando o vírus, a dor, a morte.
Aqui dentro, a solidão e o temor
de nem poder me aconchegar
num abraço de despedida,
caso algum dos meus se vá.

Lá fora, o pobre, indefeso. Alvo fácil.
Aqui dentro, escrevo apenas.
Justifico-me: é para tentar manter a sanidade.
Qual a medida de minha irrelevância?


 
;