segunda-feira, 28 de dezembro de 2020 2 comentários

Catalepsia?


Dizem que a vida é o que nos acontece 
quando não dão certo
os nossos planos.

Cá, comigo,
eu me pergunto:
e quando já não os há?

Morte, decerto,
não. Inda
dói.

domingo, 13 de dezembro de 2020 2 comentários

Opções no cardápio


 
Vingança é um prato que se come frio.
Vingança
é doce;
é sorvete?

Não, certeza
que a vingança é gazpacho.
Azeda,
gelada,
temperada e vermelha
como sangue.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020 0 comentários

Caminhantes


A partir de um poema de E.M. de Melo e Castro 

Apenas um passo
e é então possível
medir a extensão
do andar de um homem.

Ainda que esse tamanho
não seja preciso ou reiterado
mas, quem dá um passo, anda
e é andando que se chega.

Onde chegamos
muito nos define,
bem como as distâncias
construídas com nossos caminhares.

Pois estas são nossas
medidas, assim determinadas
pelas nossas pegadas, que ficam.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020 0 comentários

Jardim pênsil


Na teia de aranha,
animação suspensa
: uma folha seca.

sábado, 24 de outubro de 2020 0 comentários

Estampa

 


)Feche as cortinas. 
Só a penumbra 
vai dar sentido 
ao que eu disser.(

Eis as notícias:
tanta coisa aconteceu
e as novidades são poucas.

O amor se despersiana
e recolhe,
no espaço escasso de uma tarde,
uma ilíada,
um lapso,
um milagre drástico.

Você,
que se achava não-escrita,
agora é quase
marca d’água, indelével,
e isso é o que fica.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020 0 comentários

Sobre mim

 
Cada outro,
nunca assim,
onde dentro.

Tempo ainda,
nada antes,
tudo sempre.

Corpo todo,
noite e dia,
tanta palavra!

segunda-feira, 21 de setembro de 2020 0 comentários

Amor posto


Você me beija
e em mim se instala,
sem cerimônia.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020 4 comentários

O silêncio das sereias


O horizonte sujeito
à perspectiva,

o longe que está
talvez logo ali.

E no cais do porto,
um barco

à espera da mudança
das marés.

domingo, 30 de agosto de 2020 2 comentários

Este lado do paraíso


Não o beijo,
mas o calor dos seus lábios em minha pele.
Não o físsil de suas pernas,
mas o compromisso de mais estros arraigados.
Não a cópula,
só o cio que vaga lasso pelo corpo.
Cintila na íris o flerte,
dança de subentendidos.
No duelo com o desejo,
saco antes da dúvida:
com a língua em riste,
mergulho minhas papilas
numa galeria de obscurantismo
e viscidez, provo do sabor da fruta
à véspera do próprio açúcar.

De tal modo amo,
que faço o próprio Eros
abrir com faca
o esplendor de outra manhã.

sábado, 15 de agosto de 2020 4 comentários

Flavescente


Caprichosamente,
o elenco da tarde
polvilha de mínimos sons
um trinado, um sopro,
um rumor ao longe

céus fartos de amarelo
quase pálido e embaçado
daqueles que só se veem
em obras gastas e por pouco
totalmente preteridas em baús

esmorecendo
vagarosamente
o fluxo dos minutos até
a teia de aranha
cessar de se agitar
e, tanto o inseto condenado
e eu nos darmos como aceito
que nada há mais o que fazer.

quinta-feira, 30 de julho de 2020 4 comentários

Respiração


A ciência me ensina que o ar que respiro
são partículas ínfimas do cosmos
e, que tanto aqui, como em toda parte,
é tudo da mesma feitura e arte.
 

Colijo o universo no meu fôlego.

Não bastasse, a cada aniversário,
sou quase completamente diverso:
composto, permutado e reescrito
em diferentes estilhaços do infinito.

Reparto o universo no meu fôlego.

       Se cada coisa passa por mim,
       portanto estou em todo quê:

       imagino meus devaneios infantis
       hoje compondo o asfalto da estrada,

       meus desalentos adolescentes
       transfigurados numa tela pintada,

       e aquela intenção andarilha
       finalmente chegando onde era esperada.


domingo, 19 de julho de 2020 0 comentários

À face da letra


Apenas metade
do que escrevo é
o que quero dizer.

(A outra é
impedir as pessoas
de ler o que esperam 
que eu queira dizer).

domingo, 28 de junho de 2020 0 comentários

Intervalo


Eurritmia:
seus seios,
e minha mão
no entremeio.

domingo, 21 de junho de 2020 3 comentários

Espasmos


Algumas vezes, a direção dos passos é
mesmo para longe. Noutras, as mãos, até,
desentendem as tarefas e estremecem.
Pedem confirmação aos olhos: isso?
Estes simplesmente emudecem
e fingem descompromisso.

quarta-feira, 13 de maio de 2020 0 comentários

Fronteiras


)
do Diário do Confinamento
(

Cativo, na perene vontade de espaço,
estou em degredo em terras próprias:
perímetros que me cercam e não trespasso.

A ocasião me ensimesma em limites:
       ao norte, minha agastada sensatez;
       ao sul, esse medo crescente;
       a leste, o encargo econômico;
       a oeste, a torpeza geral e indiferente.

Balizas que me abrangem num duro abraço 
soberano de um domínio que me entedia
esse confim cada vez mais escasso.

terça-feira, 12 de maio de 2020 0 comentários

Notívago


)
do Diário do Confinamento
(


Tarefa mais que penosa:
decodificar os silêncios
que a vida usa para dizer.

Eu me reviro na escuridão
— a percepção sem restrições de forma —
mas a indeterminação permanece.

A estreiteza no peito intraduzível,
esse pânico persecutório inescapável:
— até quando?


segunda-feira, 11 de maio de 2020 0 comentários

Pictórico


)
do Diário do Confinamento
(

Um pouco Mondrian:
a vida dentro de limites.

Na escassez deste espaço,
a irritação come minhas beiradas
até quase me fazer só meio:

        coração fora do eixo
        bate no desconforto do peito apertado,
        predizendo uma tempestade no horizonte,

        como se guardando lugar
        para uma aflição ainda mais infinda.

domingo, 10 de maio de 2020 0 comentários

Disjunto


)
do Diário do Confinamento
(

Pela janela com gradis,
meu jardim alheio:
um buquê de ixoras aflitas,
um crisântemo aborrecido,
lantejoulas de teias de aranha
e a melancolia que se arrasta.

Tempo em pausa, um respiro,
algemando o pensamento
num embornal de cores.

sábado, 9 de maio de 2020 0 comentários

Ramerrão


)
do Diário do Confinamento
(


Quatro paredes em todos os cômodos
enclausuram-me na usança de todo dia.

Nem por isso pareço compreender melhor
o que eu vivo ou o que se passa:
continuamente cirandado
por preconceitos fósseis,
arrogâncias puídas
e aquela grandiloquência espalhafatosa
(a verborragia alucinada!).

Até que,
exausto do esforço de me insurgir
contra a bruta indiferença do momento,
capitulo frente a escolha que me é dada:
ou lavo a louça que ficou de ontem,
ou passo a roupa que já secou.

sexta-feira, 8 de maio de 2020 0 comentários

Involução do espécime


)
do Diário do Confinamento
(

Você, 
que transforma a angústia
em saudável perspicácia e defende tudo
o que compreende em palavras:
   sua condenação virá pela língua,
   na erosão lenta, mas indiscutível
   que dimana de cada decepção.

Você,
que consome informações
em crescente desgosto, sem ao menos
ter a percepção de como tempo devora
só os desamparados e se dá a si mesmo
seus próprios mandamentos –
[não sou -fóbico ou -ista 
(insira aqui seu prefixo), mas...]:
   atente para o momento em que não fizer sentido
   a natureza das coisas crispadas em seu íntimo.

Não é preciso se apressar, nem jogar fora
a verdade mais persistente:
“amai-vos uns aos outros”,
“somos todos iguais perante a Lei”.
Só se lembre bem de como era a vida antes:
obscurantismo, ignorância, medo
da escuridão como devorador de gentes,
o trovão que era reprimenda dos deuses,
um panteão inteiro a idolatrar em sacrifício.

Diga-me então como você é capaz
de chegar a este ponto, para trancar
as portas da história e não se reconhecer
no seu povo – os outros! – e como desaprendeu as lições.

quinta-feira, 7 de maio de 2020 0 comentários

Aperto


)
do Diário do Confinamento
(

São dias de parede branca 
e gestos anêmicos pontuando a reclusão:
as quinas dos móveis rigorosamente perfiladas,
a bagunça dos sentimentos em confusão.
Movo-me em lapsos, sem pressa nem propósito,
cozinhando em fogo lento a adiada refeição.
Mas eis que a vontade moribunda
à revelia dessa condição,
quer abrir as janelas (como se o ar fosse puro)
e a porta (sem tanta inquietação),
pois existir assim é muito pouco:
vida minguada em constante contração.

quarta-feira, 6 de maio de 2020 2 comentários

Simplório?

)
do Diário do Confinamento
(

Lembranças se propagam como fungos
e penetram fundo nos ossos da saudade:
o menino em mim recorda de quando
era simples separar o bem da maldade –
a maioria seguia com suas vidas,
sem fermentar tanta perversidade.

Contudo, talvez não fosse mesmo assim.
Talvez fosse tão somente ingenuidade.
Provavelmente a antipatia era ampla
e se disfarçasse a hostilidade.

Só sei que está sendo difícil 
esperar o melhor dos outros:
muitos berram sua raiva da alteridade
e se fecham em ficções egoístas,
descomprometidos com o que é de verdade.

terça-feira, 5 de maio de 2020 0 comentários

Narrativas


)
do Diário do Confinamento
(

Nesse tremeluzir de viver restrito pela rotina,
ocupamo-nos com a busca de certezas que não há.

Confundimos acaso com escolhas,
nossos rótulos e moldes com as coisas em si,
os registros de nossa lembrança com história.

Assim, não é bem o que nos acontece —
mas o que sobrevive
aos consecutivos naufrágios
de nossas vontades, cogitações e memória.

segunda-feira, 4 de maio de 2020 2 comentários

Da janela

)
do Diário do Confinamento
(


Da minha janela não dá para ver muito.
Já tive janelas melhores, em lugares piores.
Também já nem tive janelas, tão-só
olhando para dentro: oclusos arredores.
Mas o que é janela é senão um modo de olhar?
O resto são pormenores.

Da minha janela não dá para ver muito.
Continuamente pouca coisa, quase nada.
Os mesmos rituais de todo dia,
a vida pelo crivo do familiar desvendada.
Única mudança: perceber 
nossa esperança mais e mais precarizada.

domingo, 3 de maio de 2020 0 comentários

Informe


)
do Diário do Confinamento
(

Indeciso, titubeante, atrapalhado.
O contrapeso das dúvidas povoa meus dias.
No banho, tento caber
no magro diâmetro da água,
mas sobra corpo, ando
sobrando demais.

Nessa vida de parêntese sem par,
encerro o que continua inaudito —
num mundo em conta-gotas,
cheio de cismas e alarmes,
tudo é transitório, amorfo e impreciso.

sábado, 2 de maio de 2020 0 comentários

Litania


)
do Diário do Confinamento
(

Como tratar trivialidades num poema:
clarear os fatos abrindo as janelas
e deixando o silêncio
engordar os cômodos da casa.
Escrever — quase uma solução —
pois a palavra tem sido o lugar
onde levanto abrigo.
Adentro,
esse grande escuro pertencente a todos,
minha trajetória mínima se distende
e se confina dentro dessas margens.

sexta-feira, 1 de maio de 2020 0 comentários

Percepção


)
do Diário do Confinamento
(

Fato primário e brutal:
mesmo quando nada está, algo acontece.
Quietude também é progresso,
ainda que ardentes devotos da produtividade,
baralhemos ocupação com eficácia
e movimento com avanço.

Coisas tantas
que achamos
que entendemos,
                          até que
                          sustamos.

quinta-feira, 30 de abril de 2020 0 comentários

Cangalha


)
do Diário do Confinamento
(

A gente vai aceitando as coisas, todo dia,
até que se concretizam em couro de provérbio:
de estória ou fanfarrice à razão absoluta.
Sedimento repetidas vezes assentado, lia,
e ainda assim, ecoamos convictos:
contra a praxe não há disputa.
Ofendemo-nos com as verdades da minoria
que fustiga o instável alicerce de nossas fés
e prosseguimos nessa pirraça resoluta.
Até que chega o momento, todavia,
quando a vida (a morte?) pulveriza tudo
e só nos resta continuar na labuta.

quarta-feira, 29 de abril de 2020 0 comentários

Números


)
do Diário do Confinamento
(

Entrementes, no quebranto das notícias,
o extermínio galopante, implacável.
A fatura cruel de eleições sinistras
no recenseamento do luto inviável.
Sem adeus nas covas a granel,
a ferida fica aberta, inexplicável.
A morte virou estatística,
um desmazelo indesculpável.
Perdemos vidas, não cifras,
e não há planilha que nos seja razoável.

terça-feira, 28 de abril de 2020 0 comentários

Óbito alheio


)
do Diário do Confinamento
(

Sua explicação
esclarece,
mas o medo não
esvanece.

Não que acrescente
meu comentário
ao estritamente
necessário:
nunca sabemos quantos se vão
naquele que perece.

segunda-feira, 27 de abril de 2020 0 comentários

Intoxicação


)
do Diário do Confinamento
(

O entusiasmo é uma silhueta momentânea:
a dança faminta das notícias logo me paralisa.
A esperança envenenada pela instabilidade 

                                                                             [das coisas
depressa se torna fel, desamparo, ojeriza.


domingo, 26 de abril de 2020 0 comentários

Fosco


)
do Diário do Confinamento
(

Tiro meus óculos e o mundo
abranda prontamente:
as quinas dos móveis,
o rosto cansado no espelho,
as notícias ruins no jornal.

sábado, 25 de abril de 2020 2 comentários

Alcance


)
do Diário do Confinamento
(

E não é que passamos a vida tentando discernir
onde terminamos e o resto do mundo começa?
Extraímos da simultaneidade do existir
essa imagem congelada e sem pressa,
sustentando ilusões de permanência,
de seres lineares vivendo em congruência:
vidas que se prorrogam em falha coerência.

sexta-feira, 24 de abril de 2020 0 comentários

O vizinho


)
do Diário do Confinamento
(

O vizinho sabe
nada além
do que se sucede em conflito.
Disposto e armado
da retórica mais vil,
quer catequizar todos no grito.
Estratégia de marketing ou gafe,
repete chavões reacionários,
antes vomitados por seu mito.
Chauvinista e fanfarrão,
cospe imposturas preconceituosas
quase tendo um faniquito.

O vizinho vocifera disparates
como se, para respirar,
isso fosse requisito.
Abrutalhado em sua mediocridade,
renega tudo o que não entende:
ciência, para ele, é delito.
Apóstolo do obscurantismo,
brada que sua opinião vale tanto
quanto todo livro escrito.
Cúmplice de impiedades,
vilipendia sua companheira,
(esse seu esporte favorito).

O vizinho, talvez, também,
seja alguém que more aí perto,
em seu distrito.

Afinal,
quem hoje não conhece
alguém assim descrito?

quinta-feira, 23 de abril de 2020 0 comentários

Sede de sal


)
do Diário do Confinamento
(

A razão da minha aflição se dissipa,
sepultada nos sulcos do fato em si:
sou plateia para hipocrisias,
audiência para pesares,
público de solidão.

Minha agonia é raquítica,
enquanto tantos se afogam na asfixia —
grão de sal submerso na alvura do leite,
o brancor de um, absorvido no outro.

quarta-feira, 22 de abril de 2020 2 comentários

No viveiro


)
do Diário do Confinamento
(

Aqui está a saudade e a tristeza de uma vida
que era minha e da qual eu não queria
que assim se estilhaçasse tão abruptamente.

Tal a trajetória de um peixe no aquário,
atravancada pelo vidro,
a sina é continuar,
apesar de,
até.


terça-feira, 21 de abril de 2020 2 comentários

Posologia


)
do Diário do Confinamento
(

Tentamos ser tudo de uma só vez:
nossos nomes e sobrenomes,
nossa solidão e nossa coletividade,
nossa ambição afoita e nossa esperança cega,
nossos amores
não correspondidos
e parcialmente aceitos.

Nossas vidas perpendiculares
configuradas em paralelo,
não nos gráficos austeros da biografia oficial,
mas em diagramas de múltiplos lados
e pontos de vista.

Vidas que se tramam com outras
e dessa tapeçaria surgem pequenas verdades:
contra a convenção e o coletivismo irracional,
cada um sabe a dose que lhe envenena ou cura
e a solidão que lhe é companhia ou agrura.

segunda-feira, 20 de abril de 2020 2 comentários

Meio fôlego


)
do Diário do Confinamento
(


Nuvens difusas alinhavadas no azul,  
o dia propondo suas tramas:
a temporária diluição da angústia,
a brandura em miligramas.

Um vestígio de sossego
na precariedade que me habita.
O medo ainda avinagra a alma,
mas a respiração não está aflita.

Ouso até crer que é possível
suportar esse pranto que não vaza,
ignorando a coação para sair,
não desistindo de me aguentar em casa.

Diante das minhas certezas precárias,
o silêncio honra minhas perguntas com as dele:
o que será daqui para frente?
Melhor esse sentido? Ou aquele?

domingo, 19 de abril de 2020 4 comentários

Dos copos


)
do Diário do Confinamento
(


Admiro a amnésia dos copos.
Lavados, enxugados, reusados.
Deslembram de sua água,
                              seu suco,
                              seu café.
Recebem e devolvem
quase tudo
que lhes foi dado,
sem rancor e sem remorso.
Guardam para si
só o ínfimo do sucedido,
que desaparece
antes
do próximo gole.


sábado, 18 de abril de 2020 0 comentários

Solipsismo


)
do Diário do Confinamento
(

Só eu existo, por trás dessas paredes.
Adentro trajetórias que se intersecionam,
mas sempre se voltam para mim.
Aqui. Sem escape.

sexta-feira, 17 de abril de 2020 2 comentários

Noturno



)
do Diário do Confinamento
(

Antes dessa terrível solidão,
apenas outro silêncio.
Um silêncio do depois, uma vez
que as cadeiras foram viradas sobre as mesas
e as luzes, todas, foram apagadas.

É tarde e nem o vizinho insone
caminha sobre minha cabeça.
Pela cortina, de pé, só testemunho
o acenar dos galhos das árvores.

Nossas esperanças, nosso porvir,
nossas ansiedades e pavores,
nossas noites sem dormir,
vão se desvendar
— um dia! —
como realmente são:
vento que desbasta
galhos ao relento.


quinta-feira, 16 de abril de 2020 4 comentários

Espera


)
do Diário do Confinamento
(

Dizem que o tempo é o solo
no qual podemos florescer.
Contudo,
ele mal passa, vagarosamente:
a demora fronteiriça ao vazio.
Nossa floração, assim,
mais e mais distante.

Dizem também que é preciso
dar chance à espera.

Espera,
palavra mais descabida:
se é nome,
mastiga com dentes de agulha
a incerteza do que será;
se é ordem,
é saber de coisas que serão.

quarta-feira, 15 de abril de 2020 2 comentários

Cena


)
do Diário do Confinamento
(

O silêncio, lá fora,
farsesco e performático,
não inspira confiança:
há a textura de uma guerra
nos interstícios do dia.

terça-feira, 14 de abril de 2020 0 comentários

Valia


)
do Diário do Confinamento
(

Em tempos de crise,
revelamos nossos valores:
enquanto uns ofertam sua serventia, 
outros só precificam a vida.

segunda-feira, 13 de abril de 2020 2 comentários

Mundos


)
do Diário do Confinamento
(


Lá fora, o medo e a espera. Do pior.
Aqui dentro, meu privilégio de estar
na frágil segurança do meu pequeno mundo:
livros, internet, comida na geladeira,
aquele incenso de sândalo que nunca abri.

Lá fora, a dúvida e a desinformação.
Aqui dentro, do que se lê ou ouve
é preciso filtrar e filtrar e filtrar,
até que a incerteza esteja em doses palatáveis
e não nos envenene com conspirações
além da conta.

Lá fora, teimosia e veleidades, mesquinhez e egoísmo
dançam, mãos dadas, rosto colado,
disseminando o vírus, a dor, a morte.
Aqui dentro, a solidão e o temor
de nem poder me aconchegar
num abraço de despedida,
caso algum dos meus se vá.

Lá fora, o pobre, indefeso. Alvo fácil.
Aqui dentro, escrevo apenas.
Justifico-me: é para tentar manter a sanidade.
Qual a medida de minha irrelevância?


domingo, 15 de março de 2020 0 comentários

Remate


)
Para um ex-colega de faculdade
(

Nossas tipografias tão semelhantes
apenas desiguais nas nossas serifas,

publicaram histórias desconvizinhas,
impressas em linha editorial afim;

e ainda que não haja mais composição sua,
nossas linhas sempre foram paralelas na tenção.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020 0 comentários

Pastel de vento


Certas relações são assim:
atraentes por fora,
ocas por dentro.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020 0 comentários

A ditadura das aspas


)
De um texto de Duda Rangel
(

A vizinhança disse;
a testemunha relatou;
a crítica destacou;
a perícia afirmou;
o conselho anunciou;
a autoridade prometeu;
o governo garantiu;
o ministério salientou;
a oposição argumentou;
a meteorologia previu;
a Igreja promulgou;
a propaganda divulgou;
a assessoria desmentiu;
a equipe justificou;
o elenco confidenciou;
a imprensa ressaltou;
a investigação concluiu:

nós nos tornamos reféns
das palavras de outrem
para declarar nosso intento.


 
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