terça-feira, 31 de dezembro de 2013 10 comentários

Vana verba


Onde foi que me despendi ultimamente? 
E que importância paguei 
para nem encontrar meu troco, 
os bolsos vazios? 

Meu cofre de interesses trincou-se
(a porcelana fendida em cacos)
e não tenho mais onde
depositar o pouco proveito.

Vou despendendo minhas sensações,
gastando-me constantemente. 

Exponho meu saldo:
estou falido, no prejuízo
do valor que não me dão. 

Já nem dou conta deste fundo, 
precárias horas sacadas 
e desembolsadas por completo 
no crediário da vida.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013 14 comentários

Carne e osso



Exercício esquizofrênico:
entregue à busca dos limites
desta vida onde me instalo.
Pois sou de uma contenção
ferocíssima,
o dia todo dentro.
Pois careço
da alforria do ser;
ser
um cariz novo
que exista
exatamente.
Um cerne expurgado
de tudo o que lesa,
de todo o medo
que medra
entre os dias.

E enfim,
encontrar a mim mesmo:
homem superlativo, 

a contento.

domingo, 8 de dezembro de 2013 12 comentários

Dublagem

                                                                                   
                                                                                    (autorretrato do homem de óculos)

A linguagem me perfaz.
Palavras se reconhecem na minha língua,
expandem-se na saliva,
glossolalia compondo mil dialetos
num sussurro de alvoroço.
Os fatos e espalhafatos da escrita
descascam-se de mim
como cortiça, irrompem
do harém da ideia e se fazem
a peripécia de uma rosa mística
florescendo na superfície branca.
Escrevo em off   
: sou melhor no papel, aqui
reescrevo, aprimoro, apuro.
Caminho pela vida

                                                (latifúndio de acasos sem mapa)
digitando pegadas de frases
: pessoas param para ler meus rastros,
medindo suas mãos nos pingos dos meus Is.



quarta-feira, 27 de novembro de 2013 12 comentários

Litania




Breve corcova de silêncio
: somos tanto e somos nenhum,
com nossas necessidades agudas e apetites
de hienas por verdades hediondas.
O medo nos aguarda nas costas da alma.
Vivemos uma religião de ficções delicadas.
Estamos todos sozinhos.

domingo, 17 de novembro de 2013 12 comentários

Hecatombe


O corpo espanca o carro:
súbito silêncio dos pneus.

Nos lábios da calçada,
a formiga afogada em vermelho
e a bola perdida.


domingo, 10 de novembro de 2013 16 comentários

Momentâneo


Divido o que vivo,
esta vida doidivanas:

de manhã, dádiva
(vivendo cada respiração)

de tarde, dívida
(no contínuo lidar com a vida)

de noite, dúvida
(a vida? Foi-se...)


quarta-feira, 6 de novembro de 2013 14 comentários

Falando em línguas


Eu falava o idioma da areia.
Minhas fricativas ásperas
entalhavam sons farpados
no ar entre nós; minhas sibilantes
deslizavam como se presas
dentro de uma ampulheta;
grãos escarlates cronometravam
minha voz enquanto arranhavam
a superfície da pele dela,
cravando-se em seu crânio
como uma tênue membrana de líquen.

Ela me respondeu na língua da água.
Deixou suas vogais fluírem
para preencher o espaço vazio
dentro de minhas oclusivas,
clamando cada canto
como o mar dentre as rochas,
libertando meu sopro ressonante
de repente –
uma magnólia de sentidos,
uma rara canção
em uníssono
com o vento e a lua.


terça-feira, 29 de outubro de 2013 10 comentários

Estado de coma


A batida do relógio parcela meu dia. 
Preencho minha melancolia 
com rituais de sobrevivência. 
Esqueço-me nessa inadvertência 
até meu próprio nome 
não fazer mais sentido. 
Não sinto frio, nem fome, 
nada me vem ao ouvido. 
Quase acontecimentos 
que se acumulam,
regalos e descontentamentos
que se anulam.

domingo, 20 de outubro de 2013 10 comentários

A náusea


Começou: meu corpo, consumpto e lasso,
aturdido no cânion dos lençóis,
vai se enrodilhando como caracóis,
sob o peso do meu cansaço.

Sem indício de andaime, sou lançado
nesse ilhéu que se tornou minha cama.
Cercado pelo sono por todos os lados,
vou me alastrando pelo panorama

de um extenuante langor de domingo,
sonhando com a semana, onde me extingo
num abrandamento torpe e servil
em labores de cunho mercantil,
que me reduzem a mero perfil –
cadastro, ficha, menos do que um pingo.


sexta-feira, 11 de outubro de 2013 18 comentários

Quelóides


Ela me sorri 
com seu ar de entrevero.
Consegui essa quando
eu tinha dezenove anos
”, ela diz,
enquanto eu desenho de volta no tempo
na linha em seu peito.

Penso num coração aberto,
inciso e funcionando novamente.

Silenciosamente tocando seu passado,
eu sinto um estranho espasmo de inveja.

Meu coração,
quebrado nem sei quantas vezes,
não tem cicatrizes visíveis.


domingo, 6 de outubro de 2013 16 comentários

Na garganta da serpente


Como uma sombra no pulmão
escurecendo as bordas
da respiração, granulação
no olho, areia
no sapato talvez. Esteve
sempre lá, nunca
completamente
cingida pela consciência.

Algo escuro
no canto das horas,
um cálculo, um dogma,
um fato consumado:
a certeza
de haver espaços sem nomes
entre os dias
enquanto se desfraldam,
que nos levam
cada vez mais
perto do Hades,
onde nem a linguagem alcança.

Não é
angústia, nem tristeza,
sequer ansiedade.
É aquém,
apoucado e quase menor,
uma discórdia acanhada
entre esse sol burocrático
de cartão postal
e a insolação que cresta
por dentro.

A singela discrepância
entre o genuíno sorriso
e o esgar na fotografia.

É o saber-nos
engolidos, sem pressa,
pela peçonha da inconformidade.

Perceba,
tardiamente,
que a toxina
é um líquido paciente.

Bem-vindo,

você também está vivo
e sente.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013 18 comentários

O vento & a folha


quarta-feira, 18 de setembro de 2013 12 comentários

Circunstantes


1.
Dia. Céu de nuvens rápidas.
Essa manhã tem o ritmo desajeitado
de uma língua estrangeira. Você me olha
com uma falta de pressa como se sempre
estivesse estado ali, a me olhar. Estou
desenhado na superfície de sua retina,
impresso indelével. Compactuamos o mesmo
espaço, e agora tenho você inoculada em mim,
cada pulsação tem o seu nome.

2.
Na suaviloquência dos sussurros,
buscamos capturar a impermanência
em pegadas na areia. Tormenta passada,
vejo nossos barcos à deriva novamente,
âncoras levantadas pelo quarto,
aquela sensação de não haver bússola.
Sem lar, sem laços,
o desejo operante no automático.
Você se levanta, insegura de seu passo.
Fecha a porta. Nem sei se volta.
E isso é um quase nada e tudo
: a diferença entre o valor e o preço.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013 14 comentários

Um de muitos


O real decide o possível:
                      nunca expressa tudo o que escrevemos,
                      nunca escreve tudo o que expressamos.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013 20 comentários

Grácil


Eu me pasmo à sua beleza
que só flecha e curare,
relâmpago que se abre
ante meus olhos
como Escritura,
soco no diafragma
que lateja
pelo corpo todo
e dói dias a fio.

Meu olhar excursiona
por sua pele e consigna
os detalhes
deste inefável deslumbramento
grácil
tornado carne e sangue.

O encanto é mais
do que posso suportar
e me pego
boquiaberto
(ante a exata noção)

: monumentos

já foram construídos
por menos.


terça-feira, 27 de agosto de 2013 12 comentários

Laçada


domingo, 18 de agosto de 2013 14 comentários

Hieroglífico


Alguns afirmam que sem
cultura geral nada
pode ser compreendido.
Mas cultura geral não
vai me levar a lugar algum esta noite.
No meu instinto para a falha, eu,
(íntimo do erro,
o engano já não tem segredos para mim),
leio vorazmente mas extraio
somente meu próprio entendimento.
Faço-me existir como um rato numa roda.
E o que mais me intriga
– mais do que qualquer outra coisa –
é o fato de por tanto tempo
estar lutando contra as mesmas
questões e obsessões, obtendo as respostas
boçais e estéreis de sempre,
isso não me tenha feito um pouco mais
sensato, sem algum desafogo
da precisão de compreender. 


Nessa vida sem manual de instruções,
um quinhão de ignorância 
é pressuposto fundamental para ser feliz.
 
domingo, 11 de agosto de 2013 10 comentários

Falha geodésica


Nossas histórias são cúmplices,
conexas por uma sutura
de rocha e árvore,
a linha entre elas
esmagada como escombros
num terremoto, dolorosamente
amalgamando as coisas em comum.
Algumas terminam
em dobras sobre si mesmas,
criando novos platôs e perspectivas,
para então assoalhar o sismo
onde os desacordos repousam.
Outras são esplanadas,
breve crispação da paisagem
sobre a malha de um mapa
nos arrabaldes da memória.
Nossas histórias são a medida
do tempo geológico contido
dentro de nossa ampulheta humana,
plenas de narrativas titubeantes
mal assentadas sobre o terreno dos fatos.
Erguemos altares sobre a geografia
movediça do vivido, imêmores
deste lapso geológico
e desabamos ao leve tremor
das placas mais fundas,
aquilo que nossas biografias não contaram.


domingo, 4 de agosto de 2013 16 comentários

Etc. & Tao


Não sou dono
desse átomo em meu dedo, sequer
deste outro em meu peito.
Todos são

trocados a cada sete anos,
mais ou menos. Assim,
nem posso dizer
que esse corpo me pertence, já

que a cada meia década
e meia sou outro. (Somente
a essência é constante, no entanto
mesmo ela se perde).

Desordenada matéria
de ar, água e pó
vai me formando
em cadência morosa,

passo de marcha em fileira cerrada,
para então se dispersar
e partir numa miríade
de caminhos distintos.

Como um cano de drenagem
que recolhe a chuva
num telhado encharcado,
para logo após

espargi-la aleatoriamente
na rua, somos tão só
um conduto
da desordem ao caos.


sábado, 20 de julho de 2013 12 comentários

A estrutura do dia




A tarde ensaia um sol,
enquanto
se despede de um distante
refrão de chuva.
Uma festa
de terra molhada me flui
pelos dedos.
Viajo pelos novos aromas
como ave migratória.

... Decifrando as cicatrizes
deixadas pela correnteza.

terça-feira, 16 de julho de 2013 22 comentários

Da velha história


Ocorre que estou cansado de ter medo.
Medo
que me deixa
em constante vigilância,
à espera de alguma palavra
ou gesto: uma agressão.
Ocorre também
que o amor sozinho
não sustenta,
não salva.
Mas me atenho ao amor,
ao que me resta dele.
Esse arrebatamento
de músculos e promessas.
Essas juras tolas.
Ocorre,
e isso parece resumir tudo,
que estou cansado demais,
mesmo para ser amado.


quarta-feira, 10 de julho de 2013 14 comentários

Ulisses



Estou sempre em regresso,
na recíproca da gravidade
no chão que se ergue
para o pouso do pé.
Cada movimento
é uma odisseia de volta,
dentro da qual sou
conduzido por vetores rivais,
arrasto e repulsa,
em errância por veredas
contraditórias dentro de mim.

Há esse desassossego sem âncora
: se me estaciono,
deixo um poder de passos no imóvel,
pois em hipótese alguma
devo abandonar a andança
por falta de caminho.

Se você me perceber
na quietude de um instante,
saiba que o que vê é uma fotografia,
eu nunca sou sereno assim,
meu deslocamento é constante
e essa é a verdade,
a verdade dos perímetros cambiantes.

Ou talvez não
a verdade inteira, apenas
a distância que se ajusta a mim
: na ambulação de todas as lonjuras
está a minha jornada de retorno para casa.


 
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