quinta-feira, 10 de dezembro de 2015 14 comentários

Segunda pele


O tempo se dobrou
e não dei importância
ao primeiro vinco.

Acreditava que o passar
de meus dedos
pudessem suavizá-lo de vez.

As rugas, hoje,
fazem parte do sorriso.


domingo, 1 de novembro de 2015 10 comentários

Sagração do hábito


Hábito, 

nossa magra porção de coisas 
                                                       que se sucedem, 
divindade de tudo o que é 
                                                       monótono à nossa cognição 
e que labuta na previsibilidade 
                                                       dos fatos reiterados. 
                                                       Quando eu abro o zíper 
da manhã num vão de porta 
entreaberta ao primeiro sol, eis
                                                       : rarefeito como sempre. 
E eis na correspondência – 
                                                       as contas habituais 
                                                       e uma carta de minha mãe, 
lida na ligeireza e propósito 
de uma saudade que se atropela 
na digestão precoce de um meio-dia. 

Eis ainda 
na conversa à deriva dos lábios 
                                                       (essa parede delgada 
                                                       e impermeável 
                                                       que nos atravanca a prosa), 
que nos aproxima 
                                                       e nos distancia 
no supermercado, 
na parada de ônibus, 
nos portões da escola, 
                                                       onde confundimos 
                                                       convivência com amizade. 
 
Hábito,
nosso pequeno nume dos intervalos 
                                                       entre desastres e deslumbres, 
que nos concede o fausto de sua praxe, 
                                                       o pouco 
com que nós aprendemos a contar, 
nós o louvamos 
                                                       à repetição: 
por todos estarem em casa para o jantar, 
                                                       pelo status quo
                                                       pela lua que regressa 
como uma segunda chance 
                                                       depois da chuva, 
por essas últimas horas antes do sono,  
quando recontamos o dia 
                                                       um para o outro, 
                                                       e pegamos o livro já lido 
                                                       inúmeras vezes, 
cada vez tão familiar 
                                                       e tão inexplicavelmente
                                                       outra 
                                                       e original.

sábado, 3 de outubro de 2015 12 comentários

Vinte e quatro quadros por segundo


Ruínas de um dia. Todas as alternativas
 do apartamento já gastas de tanto uso:
...você que não telefona. E eu plantado
em esperas. Com uma angústia azedando 
nos olhos. Com um coração extraviado, 
Tordesilhas do outro lado da cidade. 
O motor, o pneu, o trânsito? Uma 
pluralidade de desculpas tripula sua 
ausência. Por que você não me liga?

sexta-feira, 4 de setembro de 2015 16 comentários

Ossos do ofício (ou o porquê de escrever)


Não há indicações de frases 
em lugar algum,
nenhuma senha, 

nenhuma passagem
a outros lugares onde 

a linguagem se faz
presente. Contudo 

sou simplesmente
uma pessoa 

matizada de palavras. 
Tudo há
de ser possível no escrito. 

E as palavras carecem
de ser despertas de seu sono de dicionários.



sábado, 1 de agosto de 2015 14 comentários

Da ordem do imprevisível


Trilha sonora ao fundo: 
                                      
                                      a cadência dissilábica do coração, 

um abuso de entrelinhas. 
                                      
                                      O monjolo dentro do peito, 

minha taquicardia, 
                                      
                                      não quer dizer nada? 

Aqui, 
                                      
                                      dentro do lado de fora, 

entregue à asfixia, 
                                      
                                      a relação é outro idioma.

quarta-feira, 1 de julho de 2015 12 comentários

Involução do espécime


Você,
que transforma a angústia
em saudável perspicácia e defende tudo
o que compreende em palavras:
       sua condenação virá pela língua,
       na erosão lenta mas indiscutível
       que dimana de cada decepção.

Você,
que consome informações
em crescente desgosto, sem ao menos
ter a percepção de como tempo devora
só os desamparados e se dá a si mesmo
seus próprios mandamentos –
[não sou  -fóbico ou -ista (insira aqui seu prefixo), mas...]:
       atente para o momento em que não fizer sentido
       a natureza das coisas crispadas em seu íntimo.

Não é preciso se apressar, nem jogar fora
a verdade mais persistente:
“amai-vos uns aos outros”,
“somos todos iguais perante a Lei”.
Só se lembre bem de como era a vida antes:
obscurantismo, ignorância, medo
da escuridão como devorador de gentes,
o trovão que era reprimenda dos deuses,
um panteão inteiro a idolatrar em sacrifício.

Diga-me então como você é capaz
de chegar a este ponto, para trancar
as portas da história e não se reconhecer
no seu povo – os outros! – e como
desaprendeu as lições.


quarta-feira, 3 de junho de 2015 16 comentários

Flagrante delito


Mato o tempo; 
não se vê nem cicatriz.
Crime perfeito.


terça-feira, 5 de maio de 2015 16 comentários

Gnomas acerca da aflição


Ainda é cedo,
mas o dia já está perdido em tédio,
fadiga e desgosto.
À laia dos conjurados,
inquirimos o inexequível
: algo que dilua a angústia.
Cerceamos letalmente a vida
ao exigir extrair deleites de tudo
o que nos cerca –
                                    a comida deve ser orgástica;
                                    o amor, arrebatador;
                                    a arte, intensa.
Incutimos até num pedaço de pão
a obrigação de nos inundar de prazer.
Mercadejamos nossa felicidade
numa pletora de transações,
produtos de que nunca necessitaremos.

                                    E, entretanto, a alegria não virá
                                    dentro das sacolas de compras.

Os tratados da agonia,
com todo o peso de uma Alexandria queimada,
dizem que a alegria não é um estado de ser.
É uma ação,
é verbo e não um substantivo.
Inexiste involuntariamente de nossos atos.
Fugaz e transitória,
porque nunca se destinou a ser duradoura,
ela é o que nós fazemos.
Alegria é pagã, incoerente,
matizada de sensualidade e melancolia.
Não é o contraponto da aflição.
Esta é mais antiga, clássica, mal intrínseco
de que padecemos, a que nenhum medicamento
pode remediar, pois que não
proveniente de qualquer flagelo físico.
Como a barca do inferno, não poupa ninguém,
somos todos iguais perante a aflição.

Não existe lenitivo milagroso
para nossa consternação.
Ser humano é ser aflito.


sexta-feira, 3 de abril de 2015 16 comentários

Dos encargos


São
impostos,
tributos,
compulsórios,
taxas,
emolumentos,
tarifas,
dízimos,
contribuições,
percentagens,
comissões,
alíquotas,
juros,
multas,
pedágios,
fretes,
portes,
coletas.

E um só salário.
Mínimo.
 
domingo, 1 de março de 2015 16 comentários

Escrito


Às folhas tantas
do esboço, a palavra
acontece.


(Sem mais delongas,
sem nem saber
se te enfara
ou te apraz,
ela se instala).


Em súplica,
feito úlcera,


dói na página.


À deriva


nessa espuma de frases,
meu tempo é assim

consumido


numa caligrafia perplexa


no branco,


a escavar
abismos na fina
superfície da folha,

em busca do bálsamo
que vai

aliviar a agonia


daquela única


palavra.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015 16 comentários

Comercial de sabonete

)
O que há entre o nirvana e o nihil?
(

De tudo sobrou
trinta segundos de vídeo:
um ramalhete de flores
e as mãos dadas
em dimensão de lente.
Uma imagem vivaz,
uma forma de exultação,
uma figuração de prosperidade.
 

Achávamos que o futuro era
confiadamente nosso, um fato
consumado, dogma, uma verdade
absoluta. Só que, vezes sem conta,
o verdadeiro não é verossímil.

Por mais funda,
mais alcança esta certeza:
quem espera, corteja
a frustração das coisas
que jamais se realizam.
 

E naquele mísero meio minuto,
toda a fulguração de uma vida a dois,
quizílias e consonâncias.

Agora, há apenas uma rosa,
tardia e murcha
: os felizes estão no vídeo.


sexta-feira, 23 de janeiro de 2015 12 comentários

Tangível


Seus dedos fazem
odisseia pela topografia
de meus poros, minha tez
de pergaminho. Vagueiam,
em romaria, pelas subidas
e depressões das cordilheiras
em minhas costelas, cumes de ossos,
decodificando os inchaços
e ondulações da epiderme
como se fossem Braille.

Estes entalhes na textura
de dobras e vincos
são as chancelas que o tempo me deu,
breviário cunhado
em escrituras de cicatrizes.

Seu afago cigano palmilha
o adobe exausto da minha pele,
carta geográfica despida de invólucros,
e me torna um frêmito de expectativas,
Kundalini
a percorrer a espinha.


 
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