segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Hermético


Ela me telefona 
para dizer que me leu. 
E que continuo 
para poucos.

Esotérico. Não 
facilito as coisas 
para meus leitores. 

Ela é gentil 
ao colocá-los 
no plural. 

Mas isso não 
é surpresa, ela é 
assim há coisa 
de muito tempo. 

Em minha defesa, 
devo dizer que o sentido 
do que escrevo está 
circunscrito pela percepção 
- melhor, pelo indiscernimento - 
do que seus olhos 
arrecadam por instantes, 
uma atmosfera mais 
do que uma 
ciência exata. 

Que você me leia
à margem do texto, 
que eu me abandone 
à castidade perversa 
do nexo recusado. 

Pois, lembre-se, 
de nada adianta a glosa 
- a própria tradução 
faz nascer o intraduzível. 

E eu tenho 
esse teimoso apetite 
que galopa pelo texto, 
que se esbate 
contra as jaulas da mesmice 
e as coleiras do já visto: 
em algum lugar 
nas frestas da prosa 
devem surgir as palavras 
resgatadas da prisão da página, 
pelo ato de se as ler. 

As coisas vivem 
pelo ofício do cotidiano, 
existem de passagem. 

Qual meu revide, 
meu desagravo 
- a desforra? 

Essa intrincada construção 
de frases que mesclam 
esperanças malogradas 
e felicidade efêmera, 
que de fora parecem 
imponderáveis e
intimamente desejam 
que a lisonja possa me fazer 
perdurar no eterno 
da intensidade 
de sua leitura.

20 comentários:

Anônimo disse...

Fabrício... Um grito em palavras mudas, num silêncio cheio de barulhos e imagens...
Fez-me lembrar da poesia que transcrevo abaixo e que gosto muito:

A Palavra Mágica
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro, não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera'

Bjusss

Fabrício César Franco disse...

Su,

Você enobreceu muito meu post. Drummond sabe como dizer dessa lida com palavras, dessa busca crônica, desse (quase) adoecimento de ter que dizer da melhor maneira. Escrever não é fácil, mas com um alento desses, até fica.

Obrigado pela visita! Beijo!

Anônimo disse...

Boa tarde, poeta! 

Assistindo ao Fantástico hoje, deparei-me com uma reportagem para turbinar o cérebro e uma das 'dicas' era aprender uma palavra nova todo dia e tentar inserí-la no dia-a-dia, em contextos que tenham sentido, claro. Aqui, hoje, aprendi duas. :)

Uma vez eu li não sei onde: do caos nascem os melhores poemas. A dificuldade em traduzir e documentar o que somos, dada até a insuficiência da linguagem, madrasta que nos limita, é arte, é vida, é morte. É nosso berço e nosso epitáfio. É a pequena morte num orgasmo. 

Prazer imenso estar aqui. :)

Em que tipo de conversa eu vou encaixar 'glosa' e 'esbate', já é outra história. 

Beijo. 

Patrícia 

Fabrício César Franco disse...

Patrícia,

Li e reli tantas vezes seu comentário que acho que, por fim, perdi o sentido (mas ganhei outros) original do que você queria dizer. O segundo parágrafo é de uma poesia exemplar. Quisera eu ter meus textos como "pequenas mortes num orgasmo"; daria-me por satisfeito de ser escritor!

Quanto às palavras glosa e esbate, pelo menos a primeiro tenho uma sugestão de uso: toda vez que for explicar alguma coisa, diga - "vou fazer a glosa"... rs rs rs

Beijo e obrigado pela visita! Volte sempre!

Anne Barreto disse...

É muito bom ser sua leitora!
E como já foi dito, sempre bom aprender novas palavras contigo!

Grande beijo!

Fabrício César Franco disse...

Anne,

Eu que agradeço a gentileza de sua leitura, mesmo com a adversidade de palavras não tão fáceis.

[Mas eu continuo no meu propósito de 'acordar' palavras de seu sono de dicionário].

Beijo!

Anne Barreto disse...

O que fazes muito bem! adoro isso!

Fabrício César Franco disse...

Anne,

Obrigado, querida, pelo carinho e gentileza!

Anônimo disse...

Estou descobrindo...
O rigor da construção de seus poemas "preveem" lacunas interpretativas que deverão ser preenchidas pela criticidade do leitor!!!
Por isto você afirmou sofrer do 'mal' de Melo Neto: 'a educação pela pedra"!
(E, como leitora, gosto de me exercitar nesta "busca"!)
Abraço, com admiração !
Andrea Marcondes

Fabrício César Franco disse...

Caríssima,

... Depois de tantas leituras, privadas e públicas, você chegou ao essencial do que é me ler. Sim, é isso, meu escrever é uma construção - a quatro mãos, a quatro olhos - que interdepende de quem me lê. Todavia, o mal de Melo Neto vem mais da minha busca idiossincrática pela palavra exata.

Abraço, com carinho saudoso (e aquela admiração crescente)!

Anônimo disse...

Fabrício querido,

descrevestes lindamente o que é sua escrita, mas tenho cá para mim que não se pode "ler um poeta", creio que lê-se na poesia o que dela reconhecemos em nós, portanto lemos a nós e não ao poeta, a este cabe guardar seus sentimentos quando mais parece expô-los e despertar em nós o que está bem guardado, um poeta despretensiosamente nos faz ler-nos. Nossa pretensão em tecer um comentário sobre um poema é caga, só revela a nós mesmos.

Um beijo

Fabrício César Franco disse...

Van,

Concordo contigo. Interpretamos o que lemos, sempre que a poesia se nos convida. Mas há que existir o comentário, ainda assim, sob pena do poema morrer em nós. E nada que nos eleve deve perecer dessa forma, em nota menor.

Beijo e obrigado pela visita!

Anônimo disse...

Ei Fabrício,

bom dia!

A finitude é uma condição, não uma escolha. Palavras escritas duram mais que nós. Um dia eu, você, os outros, seremos só leitura. Espero que falte muito.

Um beijo

Fabrício César Franco disse...

Van,

Sei que somos perecíveis e que nossas obras restarão bem mais do que nós. Contudo, ainda teimo em não pensar no fim, pois gosto muito do durante.

Beijo!

Nanda disse...

É uma reprise? Se não me engano, já escreveu a respeito e, novamente, lembrei de uma amiga que, quando comecei a caverna, ia no seu blog e não entendia nadinha...rs - Ela também não entendia como ficamos amigos. Agora, passados alguns anos; continuo mantendo contato contigo - ainda que longe - e ela perdeu-se por aí...rs - Nem sempre é preciso se entender tudo.

Fabrício César Franco disse...

Nanda,

É uma reedição. Revisada, sobretudo. E sim, esse é um tema que me angustia muito, por isso a volta a ele.

Essa sua amiga é um daqueles públicos que ainda pretendo alcançar. Fazer-me claro é o objetivo constante.

Abraço!

Anônimo disse...

Amei cada palavra. Amei o ritmo do texto. Amei a sua fluidez e a força poética dos argumentos. Sem mais.


Bjs, Lei.

Fabrício César Franco disse...

Lei,

E eu que pensava que não estava sendo claro. Obrigado pelo comentário!

Beijo!

Anônimo disse...

"Ela" tao poderosa e envolvente. Ela é sua poesia também.
[Diana Coy]

Fabrício César Franco disse...

D.Coy,

... Minha constante singradura de sentidos.

Obrigado pela leitura atenta.

Beijo!

 
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