segunda-feira, 16 de junho de 2025 8 comentários

Coito incontínuo


As janelas se sufocam em cortinas. 
O turvo e tão tangível
tentáculo de sua nicotina
correndo hostil contra minha narina,
os lençóis embrulhando sua cintura e seios,
seu cabelo em desalinho.
Você avançou sobre meus vinte e poucos anos
como se não houvesse nenhum outro lugar
para procurar o que você buscava.
Agora, na volta de todas as coisas,
bumerangue kismet,
você inscreve linhas momentâneas
na linguagem do meu desejo,
como se nunca houvesse partido.


Já sou outro, 
você é quase uma incógnita.
Não há nada aqui que nos lembre quem fomos.
Estamos na contravenção dos fatos
: você, abandonada à sorte
de um relacionamento fracassado;
eu, consolidando posições em outro peito.
Eu, que selei promessa
na infância contra o cigarro;
e você se esfumando em tabaco.
Você querendo reviver
um tempo que não tivemos;
eu, tão somente retendo
o tátil do momento que não
pude ter dez anos antes.
Nesse rufo de tambores,
o impronunciado é a desforra
contra o que não vivemos
e nossos corpos nus,
um plagiato de paixão.


                                                                               Foi só sexo.

E, contudo, foi mais.
Eu que já fui um
cavaleiro em busca do Graal
agora sou apenas
uma casca de armadura,
com um simulacro de incumbência
a me ditar os dias.
Você me deu a alforria
que eu não precisava.
Eu lhe dei um prazer transitório.
Essa história já deveria
ter sido contada em outras épocas,
ainda no tempo em que somente
minha língua havia em sua vulva.
A saliva secou há muito.
Ficou só a lia,
cicatriz amarga como fel.

segunda-feira, 12 de maio de 2025 10 comentários

Ouropel


Palavras em surdina, 
sem nenhuma intenção
de abandonar os espaços
em branco.

Arrasto comigo um texto
em busca de letras exatas
para ser urdido,
que me respire e me arrebate
no seu fôlego,
que me recorte
nos parágrafos do dia.

Este repertório de conversação:
verbo,
     lema,
         linguagem,
     cairel da língua,
palimpsestos
— nada me serve.

A logorréia da intranquilidade
avança sobre meus sigilos,
finca bandeiras,
desbrava. Chego atrasado
ao que quero falar.

Como uma árvore bonsai,
minha palavra é podada.
E silencia o escrito,
até dizer.

(Quando criança, eu repetia uma palavra
intermináveis vezes para mim mesmo,
até que seu sentido se perdesse com calma,
deixando exclusivamente a crosta de um som cavo.
Tente: muito é ótimo).


domingo, 6 de abril de 2025 12 comentários

De um amor sem piedade


O amor está morto. 
E quem escreve poemas,
nesse tempo de
átimos e átomos,
está disparando no vazio.

Mas
o verbo amar,
cruel,
acossa-nos
por onde quer que vamos.


segunda-feira, 3 de março de 2025 12 comentários

Das águas que sabem de março


Fui hipnotizado pelas ondas
de um olhar
implacavelmente azul.

E na força das águas,
                            aportei

onde os olhos sabem suas lágrimas:

             enseadas lentas,
                            praias desertas e cais
             abandonados
em noites de recuerdos ao luar.

Súbito,

ventou um silêncio de brisa
                            e sem demora

                   : águas passadas,
                            sem ressaca.


 
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