quarta-feira, 7 de maio de 2014

Nexo


É a memória que nos remata?

A interrogação foi proposta por ela
ao cuidar do tio com Alzheimer,
a rede de fusíveis sinápticos se apagando,
as pequenas cidades do cérebro recenseadas
e encontradas vazias.
Onde estão o roxo e o amarelo dos ipês,
agora que na abandonada praça da recordação
configura-se um sentar ausente?
Que livros e fotos são esses,
economicamente dispersos pela estante?
Quem é esse menino na parede
que insistem que seja eu,
eu que não o conheço?
Os cômodos da casa vão
evanescendo palmo a palmo.
O presente verga-se em si mesmo,
grotescamente, sem contextura e sem fim,
um detalhe a mais fenecendo a cada dia.
Será também o amor remendado de passado?
O que será de nós, as balizas desaparecidas?
Sentiremos a ausência eclodir, quase indolor,
cada vez mais o outro rosto fazendo menos sentido,
coisa nenhuma se construindo entre nós?
O amor é findo quando a memória se gasta?



10 comentários:

Ana Rosa Vidigal disse...

Fabrício

Texto lindo. Muito.

Do início ao fim. Da liberdade desejada e espontânea do esquecimento ao zelo, por vezes, reticente da memória.

Presente sem contextura e passado de amor remendado. Amo.

Você tem razão. Sem memória, não há construção.
(Embora alguns prefiram a desconstrução do "resquecimento" ; )

Mas acredito que sem memória haja amor. O amor permanece. Em alguma coisa ou em alguém, mas permanece.

Amor nunca vem sozinho e nunca vai sozinho também : )

Ana Rosa.

Fabrício César Franco disse...

Ana,

Obrigado pelo elogio. Concordamos em discordar. Ou discordamos na concordância. Não estamos na mesma linha, embora eu compreenda o que queira dizer. Contudo (sempre há um), o amor - para mim - é uma construção, não um ente em si. Há que se ter sujeitos nele para lhe dar forma.

Beijo e seja sempre muito bem-vinda!

Rafaela Figueiredo disse...

lindíssimo, Franco!
sabe q tenho muito medo desse tal alzheimer?
suas palavras encontraram questões essenciais a se pensar diante de uma situação.
onde a razão/memória poderia deter/reter as emoções, se ela não mais existir?
somos, antiteticamente, seres [ir]racionais...

beijo, poeta

Fabrício César Franco disse...

Rafaela,

Também tenho medo do esquecimento forçado. Não lembrar porque não consigo mais é muito doloroso, esse não poder esquecer o que me forma (forja)...

Obrigado pela visita, poetisa. Que o quotidiano não lhe tire a poesia (ao contrário, lhe traga mais)!

Um beijo!

Anônimo disse...

POETA,
Depois de me encantar com a profundidade científico-linguística de seu texto, me questionei: "forget or not forget?'(sic/!)
..................................
Ah... diante dos fatos, acho que devo tentar a "sugestão" de Chaplin:
"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore,dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos".
Grande abraço,
Andrea Marcondes

Fabrício César Franco disse...

Andrea, caríssima...

Acho que sempre podemos tirar vantagem das palavras de Chaplin, principalmente se tomamos por base a necessidade - imperiosa! - de vivermos bem para, até mesmo, fazer jus à dádiva de estarmos aqui, nessa vida. Fazer menos é desperdiçar o dom que nos foi dado.

Abraço, com carinho e saudade.

Raquel Sales disse...

Poeta,

Só você pra conseguir descrever com doçura a melancolia uma das piores mazelas do corpo. Haverá algo mais humano que a memória e a capacidade adaptá-la????? Portanto, perdê-la e sentir sem perceber é dolorido que só. Peço aos céus que me livrem (e aos meus amados) de destino tão cruel.

Que as memórias nunca se percam. Bj.

Fabrício César Franco disse...

Raquel,

... Faço minhas as suas palavras: que as memórias nunca se percam.

Obrigado pela visita!

Beijo!

Nanda disse...

Não sei as respostas; mas imagino o quanto é triste perder as lembranças, as referências; parte da história... E mudando totalmente de assunto; tem promoção de 11 anos na caverna. Se tiver um tempinho, participe!!! :)

Fabrício César Franco disse...

Nanda,

... Muito obrigado pela visita!

Abraço!!!

 
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