O tempo tem câimbras.
A noite se acomoda
como um corpo num banho,
exalando nuvens e luzes de carro
- tossindo pássaros.
A escuridão, como um abraço,
senta-se comigo e preenche o quarto
com esse estranho cio de silêncios,
onde as coisas são perdidas:
tardes de feriado,
o som de um velho vinil,
fotos desbotadas,
amigos de infância.
A lembrança se esfiapa em todas as direções,
como se eu estivesse guardando o mar
em alguidares de areia.
Tudo é líquido
e sem margens.
E o que a memória traz é um destilado:
construto de espelho e sombra,
um antilume íntimo
eclipsando esse momento sem nome.
Sou causa deste efeito,
tropegamente humano.
À hora em que não há socorro,
quem não consegue arcar
com o quotidiano ríspido
há que se asilar
no passado impregnado na pele.
Escrito por
Fabrício César Franco
Há dias que são assim:
essa rejeição às soluções fáceis,
essa aflição por qualquer mancia.
Busco uma outra certeza, um modo
de dizer, um lapso.
(Espio sob as dobras do discurso).
Queria poder habitar a folha
sem tantas rasuras
e não mais bater o coração
contra essa parede de palavras.
O mundo me importa tão só enquanto
se engasta em escrita,
pois o que não sei
fazer desconto
no que escrevo
e escrevo como se em algum lugar,
entre o inalcançável e o invisível,
eu soubesse haver uma resposta fácil,
aquela que rejeitei logo de início.
Escrito por
Fabrício César Franco
O truque, dizem,
é se deixar para trás,
disfarçar-se
no corpo inconsiderado
de um homem que sempre fui
destinado a ser
e acelerar minha pressa
em direção aos compromissos assumidos.
A testa expõe seus vincos,
como se a antever
o que virá:
a lemniscata do ponto de interrogação,
o adelgaçamento da paciência,
da fé,
da confiança.
Mas aqui onde
o dialeto não consiste
de palavras mas de horários,
não importa a presciência.
Há simplesmente algarismos.
Há simplesmente a agenda,
escondendo em seus cronogramas
o ano que se agrisalha
quotidianamente,
o para sempre que vamos
deixando escapar
a todo o momento.
E nós rogamos
para que os trincos
velem as amarguras,
que as portas fechadas
filtrem as decepções,
que no fim de cada dia
haja algo que tenha
feito sentido,
qualquer um.
Escrito por
Fabrício César Franco
Percebo as pequenas coisas:
o zumbido de uma geladeira,
o atrito do tecido
de uma camisa antiga
contra a pele, o som
dos saltos de madeira
sobre o cimento arenoso,
o sentido
de uma conta telefônica
vencida.
Quando se
pára para
pensar, a maior
parte da vida
é senão
um acúmulo
de pequenas coisas,
como geladeiras
que zumbem ou telefones
cancelados.
De certa forma,
sou como
um velho amanuense,
espanando
as superfícies
da minha vida.
Perscrutando
o ordinário, em busca
de uma conexão
subjacente.
Escrito por
Fabrício César Franco
No escuro, o menino perguntava
(o que é o mundo?)
apenas para escutar sua tia afirmar
(uma casa dentro de uma casa)
ou simplesmente para sua mãe responder
(uma ala inacabada do céu).
Como alguém poderia adivinhar,
naquela casa, e nas outras que se seguiriam,
que a questão encontraria
seu começo de resposta
crescendo dentro daquele que perguntou,
aquela criança insone,
o predileto da noite?
Mais tarde, já adulto
deitado na assonia,
ele se pergunta outra vez,
meramente para ouvir
o silêncio assaltá-lo
(essa noite se arqueando sobre sua admiração,
o fado próximo que se achega na alcançadura)
e se lembrar que durante
essa parca intermitência,
esse imenso adeus
que se prolonga,
cada um deve fazer
do seu peito um sacrário,
antes que uma visita
tão estrangeira e esquiva
como Deus se avizinhe.
Escrito por
Fabrício César Franco
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